A expressão "OS POBRES DE ESPÍRITO" (οἱ πτωχοὶ τῷ πνεύματι) já me tirou noites de sono. Sim, há uma solução muito conhecida e utilizada em textos e púlpitos: Pobres seriam, na verdade, mendigos. Isto é, pobres que reconhecem sua carência, e que, portanto, pedem. "DE ESPÍRITO" indicaria que se trata de uma condição espiritual, não material. A imagem final é de alguém que sabe que não tem recursos em si mesma, mas que depende completamente de outro (do Outro) no que diz respeito a assuntos espirituais. Quem enfatiza a Sola Gratia quase grita "bingo!" e dá por encerrada a discussão. Eu já fiz isso. O problema é que me vinha como um espectro assombroso o texto de Lc 6.20, que repete a bem-aventurança, mas sem o "DE ESPÍRITO": Bem-aventurados os pobres, porque... (Μακάριοι οἱ πτωχοί, ὅτι...). Lucas queria falar também sobre gente "espiritualmente" pobre? Mas como o leitor saberia disso sem ter lido o Evangelho de Mateus? Há quem diga que Lucas fala de gente economicamente pobre, enquanto Mateus fala de gente espiritualmente pobre. Não me satisfaz essa saída. Ambos comunicam uma mesma fala de Jesus. Em princípio, prefiro entender que essa fala comunique coisa semelhante em ambos os registros. Mas, também, não posso obrigar Lucas a ter escrito o que não escreveu!
Meu problema estava estacionado por aí há anos quando uma amiga me perguntou: O que você acha que é POBRE DE ESPÍRITO? Eu reproduzi minimamente o que está no parágrafo acima, e disse que tinha encontrado um artigo que parecia interessante. Quanto o lesse, transmitiria alguma informação nova. Demorei meses para encontrar tempo para a tal leitura. Mas, enfim, chegou o dia. Primeiro, a parte técnica da coisa: Que artigo é? FLUSSER, D. Blessed are the poor in Spirit... In: Israel Exploration Journal, v. 10, n. 1. 1960. p. 1-13. Flusser basicamente encontra, nos Manuscritos do Mar Morto (especificamente, Thanksgiving Scroll, XVIII 14-15), um paralelo bastante significativo para as bem-aventuranças de Mt 5.3-5. As conclusões a que chega a partir da comparação e posterior reflexão são instigantes. Aponto somente os pontos essenciais que me parecem mais interessantes: 1) Deve-se perceber que essas bem-aventuranças se constroem a partir de Is 61.1-2 e Is 66.2. Leia e confira. 2) A formulação de um texto com a junção dessas duas passagens isoladas de Isaías, tanto nos Manuscritos do Mar Morto quanto por Jesus, se justifica por um procedimento midráshico possível somente a partir do texto hebraico, no qual as palavras que são traduzidas por "contrito", עָנִי (Is 66.2), e por "pobres", עֲנָוִים (Is 61.1) são gráfica e etimologicamente semelhantes. Bem plausível! 3) A partir do que se constrói no texto dos Manuscritos do Mar Morto e dos textos da Bíblia Hebraica que são evocados na construção, Flusser conclui que pobres diz respeito à humildade, mas também à pobreza econômica. Nesse caso, Lucas concordaria com Mateus integralmente. A expressão "DE ESPÍRITO", que, em grego, está no dativo (o que requer certa ginástica para explicação sintática), seria, conforme se nota no texto em hebraico do MMM, reprodução de uma construção do tipo construto-absoluto no idioma semítico. Não se trataria de um atributo próprio dos tais pobres, nem de uma caracterização do tipo de pobreza ("espiritual", "de espírito"), mas sim de uma referência ao Espírito (Santo) em si. Os pobres do Espírito Santo são bem-aventurados; isto é, os pobres sobre os quais está o Espírito Santo são bem-aventurados. Flusser supõe que Jesus via a pobreza em si como caminho para salvação. Discordo nesse ponto. Mas, ainda assim, parece-me possível entender que Jesus falasse dos pobres que recebe(ria)m o Espírito Santo. Não é que ricos não o recebe(ria)m, mas que os pobres, que, em si, são tidos como "desgraçados", na realidade última descortinada pelo Lógos, podem ser ditos bem-aventurados. Lucas diz a mesma coisa. Mas Mateus comunica o detalhe que faz com que tais pobres sejam bem-aventurados: o Espírito Santo. Sem o Espírito? Não é bem-aventurado, mesmo que rico. Com o Espírito? Bem-aventurado, mesmo que o mais pobre dos pobres. A vantagem dessa interpretação me parece a maior clareza na relação entre Lucas e Mateus. O leitor de Lucas teria contato com a mesma verdade, ainda que com menos detalhes. No caso da interpretação mais corrente, que eu apresentei no primeiro parágrafo, o leitor de Lucas tenderia a ler "pobres" com um sentido bem diferente daquele comunicado em Mateus. P.S. Não sei se fui claro, mas foi o melhor que pude com o tempo disponível. Clemente tem me ocupado bastante por estes dias. Conversamos.
1 Comment
joice
10/16/2020 06:33:12 pm
Em Lucas está simplesmente sobre os “pobres” e os “famintos agora”. Nesta forma de discurso, então, nosso Senhor parece ter tido em vista “os pobres deste mundo, ricos em fé, e herdeiros do reino que Deus prometeu aos que O amam ”, como estas mesmas bem-aventuranças são parafraseadas por Tiago (Tg 2:5).
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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