#3 Não leia somente fontes secundárias
Esta postagem é resultado da solicitação de um amigo. Segundo ele, muitos de meus leitores se beneficiariam de algumas instruções mais básicas para quem pretende começar a ler os Pais da Igreja. Dentre todas as diretrizes que eu posso aqui oferecer, a menos discutível é a que me serve de título: “Não leia somente fontes secundárias”. Bom, seguindo o conselho daquele meu amigo, deixarei tudo mais bem explicado: No presente caso, fontes secundárias são aqueles textos escritos a respeito das obras dos Pais. Se você pega um livro sobre História da Igreja, mesmo um bem simples como o de González, encontra algumas páginas sobre Irineu de Lyon, por exemplo. Você lê e se informa superficialmente a respeito desse Pai a partir das leituras realizadas por González. E veja que o próprio González não escreve somente a partir dos textos de Irineu de Lyon. Ou seja, ao ler González, você não toma conhecimento direto sobre o que escreveu Irineu de Lyon, mas também sobre a leitura que González (junto com outros) fez de Irineu. Para ser claro: Conhecer o que González diz sobre Irineu não é conhecer Irineu, embora seja conhecê-lo um pouco melhor do que antes de ler qualquer coisa a respeito dele. Meu conselho inicial, então, é: Não leia somente obras sobre Irineu (e outros Pais). Leia as obras de Irineu (e dos outros Pais). Um segundo conselho que me parece pertinente é: Não leia somente fragmentos, trechos das obras dos Pais. Enfrente textos inteiros. É certo que poucos podem dedicar tempo para a leitura da obra completa de um Pai, sobretudo de um daqueles que muito escreveram, como Agostinho. Mas, ao decidir conhecer um autor específico, é bem possível escolher dele um texto para conhecer por inteiro. Isso possibilita uma visão privilegiada a respeito do pensamento do autor, sobre como ele começa um argumento e o conclui, sobre como ele trabalha (ou deixa de trabalhar) com os textos bíblicos no decorrer do texto etc. Diferente do que geralmente se entende, sugiro até mesmo que se enfrente o começo da leitura do texto escolhido do Pai antes de se ler sobre esse Pai em fonte secundária. À medida em que o leitor descobre o texto do Pai em si, pode se valer de fontes secundárias e de trechos de outros escritos do mesmo Pai para começar a fazer conexões bem estabelecidas. Eu deveria, também, fornecer algum roteiro. Desculpem-me. Suspeito que vou frustrar alguns nesse ponto. Pessoalmente, acho interessante começar por uma lógica minimamente cronológica, mas não estrita. Isso significa que me parece sensato começar pelos Pais Apostólicos (que são os cronologicamente mais próximos do Novo Testamento) ou, pelo menos, pelos ante-nicenos (aqueles que escreveram antes do Concílio de Niceia). Mas, se alguém quisesse começar por Cidade de Deus ou Confissões de Agostinho, eu não diria que seria um problema. O fato é que a diversão está na possibilidade de cada um traçar o seu percurso, descobrir sua trilha. Eventualmente, lendo certo texto de um Pai, você descobre que precisa conhecer outro Pai para apreender melhor o que ali se desenvolve ou, pelo menos, para compreender um pouco de onde vem o fundamento que possibilita tal ou tal afirmação. Alguns tropeções são inevitáveis. Algumas pausas para repensar o trajeto se fazem necessárias. Mas é justamente nessa experiência que se encontra a instigante dinâmica da leitura de textos antigos. Imagine só se eu percorresse várias obras de diversos Pais, anotando todos os detalhes de minha experiência, e traçasse um mapa para você. Então, você, bem disciplinado, seguiria exatamente conforme o proposto. No final das contas, quando nós nos reuníssemos para uma prosa com café, o que aconteceria? Teríamos lido os mesmos textos. Isso é bom? Em partes. É bom que tenhamos leituras em comum para que nos entendamos bem. Mas é interessantíssimo que cada um tenha conhecimento de textos específicos, para que, no diálogo, cada um contribua suprindo a falta do outro. Não é bom que o leitor esteja só (ou meramente com uma cópia de si mesmo)! Essa dessemelhança é importante! E, por outro lado, havendo essa dessemelhança, haverá uma semelhança positiva: Nós dois teremos tido experiências próprias, descobertas e atritos específicos com os textos. Seremos semelhantes no fato de termos diferenças peculiares! Nisso está a emoção da coisa! Há anos, um amigo me disse: “Se eu chegar à idade do professor Fulano com o conhecimento que ele tem, eu fico feliz.” Eu discordei. Disse que gostaria de ter o mesmo volume de conhecimento dele, mas não o mesmo conhecimento. Não é que o conhecimento de Dr. Fulano não fosse notável! É que Fulano já existia. Não faria sentido existir outro exatamente como ele. Não seria valioso. O valioso é que haja diversidade de percursos e combinações de conhecimentos. Se você pensar bem, cada pessoa que estuda acaba tendo uma combinação própria. Isso acontece melhor quando o sistema de ensino/aprendizagem fomenta alguma liberdade e autonomia. Minha proposta para a leitura dos Pais tem a ver com isso. Enfim, leia. Não vai bem? Converse com alguém! Procure outro texto! Comente por aqui! Leia e interaja. É esse o caminho. Agora, vamos a uma parte mais prática: Onde encontrar os tais textos dos Pais? Bom, se você lê bem em inglês, eu sugiro um passeio por aqui para ler textos cristãos (e não cristãos, mas pertinentes) mais antigos: http://earlychristianwritings.com/ Para uma coleção mais ampla dos Pais em geral, o seguinte site é fenomenal: http://www.newadvent.org/fathers/ Se você precisa dos textos em português, um bom recurso é a coleção publicada pela Paulus: http://www.paulus.com.br/loja/patristica_c_113_114.html Agora, se seu interesse é mais acadêmico e exige edições mais citáveis e acesso aos originais, você pode recorrer à coleção LOEB da Harward University Press e às tradicionais edições Patrologia Graeca e Patrologia Latina. Uma boa forma de acessar esses livros é visitar uma biblioteca de instituição de ensino de teologia. Se houver uma boa instituição católica em sua cidade, fica mais fácil. Se quiser, pode também se valer dos seguintes sites: http://patristica.net/latina/ http://patristica.net/graeca/ http://latinonline.es/bilingues-latin-ingles-dominio-publico-loebulus/ Esse último link, aliás, interessa não só pela Patrística. Há obras de diversos tipos. Vou encerrar este texto por aqui. Eventualmente, no futuro, posto uma nota sobre fontes secundárias. Abraço fraterno! Cesar
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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