É a respeito da compreensão sobre as Escrituras que o nome de Karl Barth é mais evocado em discussões teológicas elementares. Isso se dá certamente pelo distanciamento do teólogo com relação às afirmações categóricas da ortodoxia a respeito da inspiração verbal. Barth não pode ser tido como conservador nesse aspecto, por não afirmar, no sentido tradicional, que a Bíblia é a Palavra de Deus. Por outro lado, não pode ser contado no conjunto dos liberais por afirmar, a seu modo, que a Bíblia é a Palavra de Deus. Essas duas afirmações, ou melhor, a negação e a afirmação expostas no parágrafo anterior tornam perceptível a complexidade da questão em Barth. No que segue deste texto, exponho de modo breve o pensamento do teólogo de modo a esclarecer minimamente o que ele entende. Barth entende ser necessário distinguir entre revelação e testemunho da revelação. A Bíblia seria uma forma como a revelação chega até nós, que não somos profetas ou apóstolos. Esses sim eram os recebedores da revelação em si. Ou seja, ainda que se diferencie da revelação por excelência, a Bíblia se constitui como o testemunho pelo qual temos acesso a essa revelação, de tal forma que, para nós, Bíblia e revelação estão estritamente unidas (RUNIA, 1962, p. 18-19). Pois bem, isso significa que o objeto Bíblia em si não é revelação ou Palavra de Deus por si mesmo. Ninguém pode gabar-se de ter a Palavra de Deus guardada em sua estante com capa de couro. A revelação nunca é posse de seres humanos, mas permanece como revelação de Deus. Também não é a apreciação subjetiva que uma pessoa ou comunidade faz da Escritura que a torna Palavra de Deus. Ela se torna Palavra de Deus repetidas vezes por ação da liberdade da graça do próprio Deus, que faz com que o testemunho cumpra seu objetivo de tornar a revelação uma realidade para o leitor/ouvinte, de modo que, por meio das palavras, essa pessoa também veja e ouça o que os que testemunharam viram e ouviram. A Palavra de Deus não é objeto, mas um evento. E quando esse evento tem lugar na realidade de alguém, para esse tal, a Bíblia é a revelação e a Palavra de Deus. Fizeram-se para ela uma só coisa (RUNIA, 1962, p. 22). É interessante notar que, no pensamento de Barth, Palavra de Deus envolve a segunda pessoa da Trindade, as Escrituras e a pregação, e que o fato de envolver uma pessoa faz com que não se trate de objeto passivo simplesmente. Melhor dito: esse fato faz com que a Palavra de Deus nunca se trate de objeto simplesmente. "A personificação do conceito de Palavra de Deus, que não podemos evitar quando lembramos que Jesus Cristo é a Palavra de Deus, não significa “deverbalização”. Mas naturalmente implica em atenção para o fato de que ela é uma pessoa em vez de uma coisa ou objeto, ainda que e tão longe quanto ela é palavra, palavra da Escritura e palavra da Pregação." (BARTH, 1999, p. 138.) A diferenciação entre revelação e testemunho da revelação, texto bíblico e Palavra de Deus, tem outras repercussões. Barth concebe a Bíblia como conjunto de textos completamente humano. O caráter divino implicado nas Escrituras não anularia nenhuma de suas características estritamente humanas, inclusive a falibilidade de seus escritores (RUNIA, 1962, p. 58-59). Ademais, diferente da abordagem conservadora, que pretende ver as narrativas bíblicas como historicamente verídicas, Barth sugere que os escritores bíblicos não distinguiam história de lendas ou sagas como os modernos fazem. De certa forma, ele parece se aproximar da abordagem histórico-crítica. Contudo, sua reação à possibilidade de textos não historicamente verdadeiros é diferente. Em vez de propor uma assepsia do texto, Barth entende que nossa reação não deve ser a de um tribunal em busca da verdade factual. Pelo contrário, devemos nos colocar diante desses textos crendo na Palavra de Deus, inclusive quando ela se apresenta na forma de uma saga ou lenda (RUNIA, 1962, p. 59-60). Convém esclarecer que Karl Barth não milita contra a atividade da alta crítica. Ele não diz que se trata de algo maléfico em si. Propõe, contudo, que se trata de um passo somente, um começo de abordagem, sendo imprescindível passar ao passo subsequente da interpretação do que o texto comunica. Destrinchar a forma ou a história do texto sem apreender sua mensagem não é propriamente fazer exegese (RUNIA, 1962, p. 63). É emblemática a querela entre Barth e Bultmann nesse sentido. Bultmann criticara Barth por seu conservadorismo, que o havia impedido abordar a carta aos Romanos de modo crítico. Afinal, diz o demitologizador, outros espíritos se faziam ouvir no texto assim como, também, o Espírito de Cristo. Enquanto a primeira reação de teólogos conservadores poderia ser uma negação da existência dessas outras vozes no texto paulino, Barth faz o contrário. Segundo ele, o texto inteiro é formado por vozes desses outros espíritos! Todas as palavras na carta são dos “outros espíritos” que Bultmann chamaria de judaicas, cristãs populares ou helenísticas. Contudo, o que o colega não entendia bem, é que todas essas palavras, toda essa aparentemente mera humanidade do texto, deveriam ser entendidas em sua relação com o verdadeiro assunto, que é o Espírito de Cristo (RUNIA, 1962, p. 64). Entenda-se que o que procurei fazer foi uma apresentação do pensamento de Barth, que não coincide exatamente com minha perspectiva. Então, por que empreender o esforço se não há plena concordância? Porque Barth é um dos teólogos mais importantes do século XX, e ninguém deveria discutir a respeito da inspiração das Escrituras e outros temas semelhantes sem considerar seu pensamento. Além disso, encontro em Barth uma via interessante e instigante, que não se enquadra no âmbito da teologia liberal (ainda que, erroneamente, alguns conservadores o tratem como teólogo liberal), nem no âmbito do protestantismo mais conservador. ----- BARTH, Karl. Church Dogmatics. Volume I: The Doctrine of the Word of God. Part I. Translated by G. W. Bromiley. Edinburgh: T&T Clark, 1999. RUNIA, Klaas. Karl Barth's doctrine of Holy Scripture. Grand Rapids : W. B. Eerdmans, 1962.
2 Comments
11/27/2020 05:36:46 am
Ual. Muito bom o texto. Direto e esclarecedor.
Reply
n the 21st (Korean time), MLB.com posted an article titled '2021 season lineup, starting rotation, and finishing pitcher prediction'. The 2021 season of the 30 clubs was dissected, and Ryu Hyun-jin was classified as Toronto's first starter. The media predicted the Toronto 5th starter as Ryu Hyun-jin-Nate Pearson-Lobby Ray-Stephen Mats-Tanner Roar.
Reply
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|