É tão óbvio que acessar os textos bíblicos em sua língua original é fundamental para uma interpretação mais segura! Mas o óbvio costuma ser esquecido. Por isso, voltamos a ele. É ruim que se esqueça de algo tão notório. Mas trágico mesmo é quando, além de não acessar o texto na língua original, a pessoa trabalha com uma tradução com a certeza de ter absoluta precisão em sua leitura. Trago dois exemplos tensos, mas completamente reais. O primeiro, vem de alguém ligado à Igreja Católica Apostólica Romana. Querendo defender o dogma da virgindade perpétua de Maria, isto é, a afirmação de que, após o nascimento de Jesus, Maria não teve uma vida matrimonial convencional com José, a pessoa cita Isaías assim: “A Santa Mãe de Deus, sempre Virgem. Este é o sinal profetizado pelo profeta Isaías: ‘A Virgem dará a luz UM filho que será chamado Emanuel (Deus conosco).” (Isaías 7,14)” O destaque do UM em caixa alta é dessa pessoa, e sugere que ela menciona o versículo com o propósito de mostrar que, segundo a profecia, Maria teria 1 só filho. Qual o problema disso? Qualquer bom leitor de português sabe que “um” (e “uma”) pode ser tanto um numeral (1) quanto um artigo indefinido. Como saber de que se trata nessa frase de Isaías? Bom, o melhor mesmo é olhar o texto em hebraico. Sem muito esforço, até um iniciante poderá dizer: “Não há numeral ali. O texto em português está usando um artigo indefinido.” Um estudante um pouco mais sabido ou disposto a mostrar saber completaria: “Não há artigo indefinido em hebraico. A ausência do artigo definido já pode indicar a indefinição. Então, como não há artigo definido, é natural que, na tradução, apareça um indefinido”. Se não sabe hebraico, nada de hebraico, o que a pessoa poderia fazer? Bom, nesse caso, poderia olhar uma tradução em inglês, por exemplo, já que, nesse idioma, embora haja artigo indefinido, “a”, ele não se confunde com o número “one”. Mas esse movimento só pode acontecer se a pessoa tiver o bom senso de suspeitar do óbvio: Tradução é tradução! Posso me destrambelhar nas conclusões confiando nela como se fosse o texto original. Detalhe até aqui: Não estou discutindo a doutrina em questão. O ponto é o argumento inábil. Quer ver isso do outro lado. Vamos a uma clássica no meio evangélico. Perdi as contas de quantas vezes, quando o assunto eram as parêneses de Paulo sobre vivência familiar, ouvi gente explicar o texto a partir da seguinte afirmação: “Submissão é estar sob (a mesma) missão (do marido)”. Há variações, é claro. Mas a base é uma só. Percebe como uma suposta etimologia do termo em português é apresentada como forma de iluminar o sentido do texto? Qual o problema? Os problemas, na verdade, são dois basicamente: 1) O termo submissão é um termo em português. Será mesmo que uma observação etimológica dele ajudará a compreender um texto escrito em grego? A resposta seria “sim”, somente se, em grego, o termo usado partilhasse de uma formação semelhante. Não. Não é o caso. 2) A etimologia de “submissão” apresentada não corresponde à realidade linguística. É uma invenção popular. Nesse caso, então, o malabarismo é equivocado por supor que se pode analisar detalhes de uma tradução para acessar o “verdadeiro sentido” de um texto escrito em outro idioma. E é equivocado por nem acessar a própria tradução com rigor. (E veja bem: Nesses casos, não é culpa do tradutor. A tradução está boa. Mesmo assim, é o que tem que ser: uma tradução.) Mas não é elitismo isso de exigir uma abordagem dos textos em grego, hebraico e aramaico? Tão pouca gente tem acesso aos textos nesses idiomas! Sim, eu sei. Não estou dizendo que ninguém deva ler as escrituras nas traduções. Traduções são uma bênção de Deus para a Igreja nos mais variados lugares. O ponto é o que se faz com as traduções. Que sejam lidas para a edificação diariamente é algo excelente. Mas não sejam utilizadas para criar explicações intrincadas sobre os textos ou para desenvolver ou sustentar doutrinas. Não. Isso é muito inadequado. A Reforma enfatizou com todas as forças a necessidade do estudo das Escrituras em suas línguas originais. Os reformadores se dedicaram arduamente a esse acesso às fontes, e incentivaram que outros o fizessem. Lutero, que queria boas escolas para toda a gente, não queria só o alemão sendo dominado pela geração de estudantes que se formava naquele tempo: “Por isso é algo bem diferente o caso de um simples pregador da fé e de um intérprete da Escritura ou, como diz S. Paulo, de um profeta. Um simples pregador dispõe (é verdade), com base em traduções, de suficientes enunciados e textos claros para entender e ensinar a Cristo, viver uma vida piedosa e pregar a outros. No entanto, para interpretar a Escritura e tratá-la autonomamente e para combater aqueles que citam a Escritura erroneamente [...] sem línguas isso não é possível.” (Obras Selecionadas, v. 5, p. 314)
0 Comments
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|