É possível fazer de Deus um ídolo? Breve conversa com Lutero e Jon Sobrino Cesar Motta Rios A idolatria é enfrentada por Deus de forma intensa ao longo do cânone. No Êxodo, nos Salmos, nos Profetas, nas Epístolas e no Apocalipse, não é difícil encontrar duras palavras contra a sempre presente iniciativa humana de colocar algo além de Deus no lugar de Deus. Isso é óbvio. Agora, existe a possibilidade de ser idólatra sem querer trazer algo para o lugar de Deus, mas servindo a Deus somente? Nesse caso, o problema não estaria na identidade de Deus, mas nesse servir a Deus, que tentaria colocar a Deus no lugar de um ídolo. Jon Sobrino desenvolve algo nesse sentido. Em seu livro Onde está Deus?, argumenta que o amor a Deus está unido ao amor ao próximo, ao amor às pessoas, de modo que não se pode fazer uma coisa sem fazer a outra. Cita 1 João 4.7-21 e, de fato, não se distancia muito do que se lê na pequena carta joanina. Em seguida, cita outros textos: “Diz nos profetas: ‘(...) quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas’ (Isaías 1.15-17). Diz Jesus: ‘Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-se com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta’ (Mateus 5.23-24).” (SOBRINO, 2007, p. 183) A conclusão de Sobrino, a partir destes textos, é: “em nome de Deus somente se pode fazer bem ao ser humano” (SOBRINO, 2007, p. 183). Mas o que mais me interessa está no desdobramento: “Nessas citações apresenta-se uma visão de Deus que proíbe fazer de Deus-em-si objeto de fanatismo. Deus não gera fanatismo, gera paixão pelo ser humano” (SOBRINO, 2007, p. 183). Esse fanatismo é, obviamente, idólatra, pois tem Deus por objeto. Mas uma citação que Sobrino faz de Käsemann esclarece: “O criador que entra em conflito com a criatura é um deus falso, e os deuses falsos tornam inumanos inclusive os piedosos” (KÄSEMANN apud SOBRINO, 2007, p. 184). Dentro do âmbito cristão, é possível fazer de Deus um ídolo! É certo que Sobrino explora essa possibilidade a partir de sua agenda. Ele quer fazer seu leitor concordar com o caráter irrevogável do amor aos seres humanos como parte da fé cristã, de modo a defender um envolvimento, uma ortopraxia, sem se preocupar tanto com questões de ortodoxia. Trago, agora, um exemplo de outro tipo, mas assemelhado na estratégia. No Catecismo Maior, comentando o Primeiro Mandamento, Lutero considera essa possibilidade. A bem da verdade, ele entende que isso acontece: “Existe, além disso, outro culto falso. Trata-se da maior idolatria que até agora praticamos, e ela ainda impera no mundo. Nela, também se fundamentam todas as ordens religiosas. Diz respeito apenas à consciência, quando essa procura ajuda, consolo e salvação em suas próprias obras e presume de forçar a Deus a lhe abrir as portas do céu, e calcula quantas doações fez, o número de vezes que jejuou, rezou missa, etc. Nessas coisas põe sua confiança e delas se abona, como se nada quisesse receber gratuitamente de Deus, mas obtê-lo por esforço próprio ou merecê-lo de modo superrogatório, exatamente como se Deus tivesse de estar a nosso serviço e ser nosso devedor, nós, porém, os seus senhores feudais. Que é isso senão fazer de Deus um ídolo, sim um deus-maçã, e a si mesmo reputar-se Deus e em tal se erigir? Mas isso aí é um tanto erudito demais, impróprio para alunos de pouca idade.” (CM, 1º Mandamento, 22-23) Curiosamente, uma diferença entre Lutero e Sobrino nesses trechos aqui contemplados está no fato de que o reformador não procura textos bíblicos para demonstrar o caso que traz à luz. Está numa reflexão longa sobre possibilidades de descumprimento do Primeiro Mandamento. Além disso, reconhece que essa observação que propõe traz dificuldades de apreensão, possivelmente por causa da própria identidade do ídolo, que é feito a partir de Deus. Uma semelhança entre Lutero e Sobrino está no fato de que ambos concebem essa possibilidade do Deus feito ídolo a partir de suas próprias agendas, de seus enfrentamentos em contextos específicos. Sobrino combate duramente a indiferença para com os pobres da América Latina, o que pode fazer com que se descuide eventualmente de questões doutrinárias, ao menos conforme o entendimento da própria Igreja Católica Apostólica Romana.[1] Lutero, na defesa da doutrina da salvação somente por graça mediante a fé, procura mostrar por diversas formas a inadequação de uma teologia ou religiosidade baseada em busca por méritos próprios do ser humano diante de Deus. No fim das contas, por caminhos diversos e possivelmente estranhos para muitos, Sobrino e Lutero apontam para um risco muitas vezes esquecido. Com aparência de fidelidade a Deus, alguém pode se tornar idólatra, por meio de uma deturpação perigosa e sub-reptícia da fé cristã. Eu me arrisco, por fim, a dizer que, no que trouxe de cada teólogo para o presente texto, vejo uma possível complementariedade benéfica. Sobrino lembra algo muito marcante. Especialmente, a partir de Mateus 5, mostra que o culto não pode ser desculpa para a indiferença diante do próximo. Revela que a minha relação vertical (com Deus) não torna dispensável uma consideração sobre minha relação horizontal (com o próximo). Lutero, por sua vez, mostra que, nessa relação vertical (com Deus), não entra em consideração, para fins de mérito, nosso desempenho, seja em nossa prática religiosa ou mesmo o envolvimento nas relações horizontais (com o próximo). Se me for permitido dar um passo a mais, ensaio dizer que uma visão ampla da fé cristã deve nos fazer partir de nossa relação vertical (com Deus) para uma vivência correspondente e coerente com essa realidade nas nossas relações horizontais (com as pessoas). A expressão “justificação pela fé” deve vir seguida de um ponto final - quando o assunto é mérito para salvação. A expressão “justificação pela fé” deve vir seguida de uma vírgula - quando o assunto é a vida cristã como um todo. Ela jamais pode ser usada para se ocultar os outros seres humanos como pessoas a serem amadas na perspectiva da fé em Cristo. Afinal, como comenta Lutero no Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos, que a Fórmula de Concórdia faz questão de citar longamente: “Oh! A fé é coisa viva, diligente, ativa, poderosa, de tal sorte que lhe é impossível deixar de operar incessantemente o bem. Nem pergunta ela se boas obras devem ser praticadas, mas antes que se pergunte, as praticou, e sempre está em ação. Aquele, porém, que não faz tais obras é homem sem fé, tateia e olha ao redor de si, buscando a fé e as obras, e não sabe nem o que vem a ser fé nem o que são boas obras. A fé é confiança viva e decidida na graça de Deus, tão certa que por ela morreria mil vezes. E essa confiança e conhecimento da graça de Deus torna alegre, intrépido e animado para com Deus e todas as criaturas. O Espírito Santo é quem faz isso pela fé e, por isso, o homem se torna, sem coerção, disposto e desejoso de fazer o bem a todos, servir a todos e sofrer toda sorte de coisas por amor a Deus e para sua glória, o qual lhe concedeu essa graça. É impossível, assim, separar as obras da fé, tão impossível como separar do fogo o queimar e o iluminar” (Cf. Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida, IV Das boas obras, 10-12). Isso precisa ser lembrado, de modo que não se ampute a fé cristã enquanto se tenta uma fidelidade que, embora pareça piedosa, não é a resposta ao chamado de Deus conforme a vontade revelada do próprio Deus. ------------------------- P.S. Se você leu tudo e não entendeu ou achou estranho, converse comigo. Sei que andei aqui por um caminho arriscado e não gostaria que o resultado fosse confusão. [1]https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20061126_nota-sobrino_po.html
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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