A academia exige rigor na linguagem. Se você for um biólogo e disser que todos os micróbios precisam de uma temperatura menor que 60 graus centígrados para viverem, mas houver alguns deles que apreciem viver no Rio de Janeiro, seus pares vão cobrar explicações. Se você estiver escrevendo um artigo sobre os judeus no século I d.C., e disser que havia comunidades judaicas em todas as cidades romanas com alguma expressividade, seus pares vão pedir evidências. Academicamente, seu discurso não terá sido verdadeiro por um micróbio ou por uma cidade longínqua! Mas os Evangelhos não foram escritos para passarem por esse tipo de avaliação. Trata-se de outro tipo de discurso. Há alguns anos, em um grupo de estudos bíblicos, líamos Marcos 2.1-12, aquele episódio do paralítico descido por uma abertura no telhado. Depois de discutirmos sobre a contenda de Jesus com os escribas ali presentes, sobre o significado de ‘filho do homem’, e coisas assim, alguém reparou no versículo 12: “de modo que todos ficaram maravilhados e glorificaram a Deus dizendo: Nunca vimos coisa assim!”. A pessoa disse: “Então, quer dizer que, depois da cura, até aqueles escribas glorificaram a Deus!” Eu parei um tempo. Suspirei e respondi que era possível, mas que talvez não fosse assim. “Mas como está no grego? Não é ‘todos’ também?” - Solicitou. Sim, em princípio, em grego, πάντας indica a mesma coisa que “todos” em português. “Então foram todos!” – Afirmou ainda mais convicto meu amigo. Bom, mas, imagine que você foi a uma festa, e as pessoas sorriam e conversavam animadas. No dia seguinte, alguém pergunta como foi. Você responderá: “Muito bom. Estavam todos muito animados.” Contudo, havia uma ou duas pessoas meio deprimidas por ali. Mesmo assim, ninguém deveria avaliar sua fala com rigor acadêmico. No meio acadêmico, “todos” tem que indicar a totalidade. Mas, na vida comum, usamos “todos” como modo de indicar que algo era geral, abarcando a maioria. Olhando por cima, realmente, todos na festa estavam muito animados. Marcos pode simplesmente estar dizendo algo assim, como nós fazemos. Depois que expliquei esse meu ponto de vista, alguns me olharam um tanto preocupados. Eu pude ver que se questionavam a respeito dos limites do nosso conservadorismo. Será que o Cesar não os estaria ultrapassando? A Bíblia não é precisa? Não seria sempre verdadeira? Como a conversa toda surgiu inesperadamente, se bem me lembro, não tentei realmente comprovar minha perspectiva. Eu deveria ter prosseguido mais um pouco: O Evangelho de Marcos é preciso na medida da comunicação humana. Isto é, ele é escrito para comunicar algo e é precisamente isso que faz, usando linguagem comum para gente comum ler. Não há nada de acadêmico em vista. Nós é que tratamos o texto como acadêmicos, e exigimos dele um comportamento concorde com nosso gosto. E eu deveria ter pedido que me acompanhassem até alguma esquina, esse ponto da caminhada em que a gente tem uma bela oportunidade de ajudar quem está ao nosso lado a olhar em outra direção. E uma boa esquina seria 1 Timóteo 6.10: Ῥίζα γὰρ πάντων τῶν κακῶν ἐστὶν ἡ φιλαργυρία· Pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Nessa esquina, eu diria: Bem, se você quer precisão acadêmica no discurso da Bíblia, tem agora a obrigação custosa de me provar exegeticamente que todos os males implicados no caso de Davi com Bate-Seba e Urias se originam no amor ao dinheiro. Aliás, terá que me acompanhar ao Éden e reinterpretar o caso de Adão e Eva com a Serpente também. De minha parte, caso você não tenha êxito, estarei tranquilo e pronto para voltar a conversar sobre meu ponto de vista: Certamente, em 1 Timóteo e, possivelmente, em Marcos, o “todos” que lemos é uma forma de expressar enfaticamente o grande alcance do fenômeno... Sim, a coisa é mais complicada do que aquela leitura rasa que eu mesmo já fiz nos primórdios de minha juventude. Linguagem humana não é algo estável como matemática. P.S. E a foto que ilustra esta postagem? Que relação tem com o texto? Bem, na verdade, é a expressão corporal que eu espero de muitos dos leitores diante desse me argumento. E gostaria de dizer que os entendo e respeito.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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