[arquivo com slides após o texto.] COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA CONCÓRDIA – SÃO LEOPOLDO, RS REFLEXÃO PARA A PRIMEIRA REUNIÃO COM LEIGOS E SERVAS DE 2019 AMIZADE - OPORTUNIDADE PARA O EXERCÍCIO DO AMOR CRISTÃO Cesar Motta Rios Na década de 1980, assistíamos uma série chamada Anos Incríveis. Era uma parte boa do dia, quando nos reuníamos para ver Kevin Arnold, Paul Pfeiffer e Winnie Cooper em seus encontros e desencontros. A amizade cultivada entre eles estava no centro da história que nos atraía. Torcíamos por eles. A música de abertura era emocionante. Não entendíamos uma palavra. Mas parecia carregada de sentimento, e criava uma atmosfera bem adequada para a trama. Mais tarde, quando fui averiguar a letra, deparei-me com algo realmente bonito e apropriado para falar de amizade. A música foi composta por John Lennon e Paul McCartney, mas ficou muito conhecida na versão de Joe Cocker. O título é “With a little help from my friends”. Podemos ouvir e ler alguns versos: O que você faria se eu cantasse fora do tom? Você se levantaria e iria embora? Empreste-me seus ouvidos e eu te cantarei uma canção Eu vou tentar não cantar desafinado Oh baby, eu fico por perto (Com uma pequena ajuda de meus amigos) Tudo que eu preciso é de meus companheiros (Tentar com uma pequena ajuda de meus amigos)... O que eu gosto nessas palavras é que elas lembram que as amizades existem entre pessoas imperfeitas, e que faz parte da amizade justamente a disposição de ajudarem-se uns aos outros em suas imperfeições, e não abandonar ou falar mal sem estender a mão. Ou seja, não se trata só de admiração mútua: “Eu sou seu amigo, porque você faz isso bem, porque é bom em tais e tais atividades, e tem tais e tais características positivas...”. Trata-se de andar junto também quando vacilamos, quando erramos. A música lembra que é função do amigo ser um amparo nas dificuldades. Lembra que a atitude esperada é essa. Além disso, a pessoa que canta demonstra estar em uma situação de necessidade. Ela remete ao tema da solidão e questiona: “Você se incomoda por estar só?”. Nem todo mundo expressa esse tipo de incômodo tão claramente. Muita gente passa por momentos difíceis sem confiar ou pedir “uma pequena ajuda” dos amigos. Mas, se há amigos, eles devem estar atentos e disponíveis para amparar em toda e qualquer situação. Essa percepção sobre amizade lembra a frase mais conhecida e mais citada das Escrituras sobre o assunto: “O amigo ama em todo tempo, e na angústia nasce o irmão” (Provérbios 17.17). Não é só nos tempos de diversão que o amigo ama, mas em todo tempo. E é especialmente nos tempos difíceis, nas dificuldades da vida, que esse amigo se revela como um verdadeiro irmão. É uma afirmação sobre amizade. Agora, as Escrituras, nas histórias que contém, teriam exemplos de amizades assim? Podemos pensar um pouco em Abraão e Ló? Parente de sangue pode ser amigo, não é? E Abraão, no momento mais complicado da vida de Ló, quando ele estava para ser consumido junto com o pessoal de Sodoma e Gomorra, intercede e, assim, Deus poupa Ló e sua família. E Rute e Noemi? A nora resolve ser fiel companheira da sogra em um momento profundamente triste e problemático de sua vida. Em vez de abandoná-la, segue junto em sua jornada de volta à terra de Israel. Podemos pensar em Davi e Jônatas? Mesmo sendo ofendido e agredido por seu pai, Jônatas mantém a fidelidade ao amigo e o ajuda no momento de dificuldade e perseguição. E não é amizade o que parece haver entre Paulo e Timóteo? Estiveram juntos tanto tempo e, ao que parece, no fim da vida, Paulo escreve a ele pedindo que fosse até ele com umas coisas pessoais. Expõe seu sentimento e sua situação (2 Tm 4). Já que falamos de Paulo, lembro que ele era um sujeito que valorizava muito a verdade, o que é correto. Chegou a repreender até ao próprio Pedro. Então, como funciona isso de ser amigo e ter que dizer a verdade, que, algumas vezes, não vai agradar? Como é que a gente lida com o fato de que um amigo erra e precisa parar de errar em uma coisa ou outra? É complicado. Então, antes de enfrentar a questão, vamos ouvir música de novo: Desafinado de Tom Jobim, da qual destaco os seguintes versos: Se você insiste em classificar Meu comportamento de anti-musical Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isso é bossa-nova, isso é muito natural O que você não sabe nem sequer pressente É que os desafinados também têm um coração A pessoa aponta para o fato de que há algo além da perfeição musical a ser considerado. Há também o sentimento daquele que canta. Como ela vai receber essa crítica? Isso deveria, segundo a música, ser considerado por que tece a crítica. Deveria mesmo? Eu entendo que sim. Não como se o sentimentalismo fosse mais importante que tudo, a ponto de se desistir de afirmar a verdade, mas “falando a verdade em amor” (Ef 4.15), nós podemos considerar não somente o que é correto, mas também como a outra pessoa vai se relacionar com a afirmação disso que é o correto. Na Igreja Cristã, a preocupação com outro é importantíssima. Paulo ensina isso no capítulo 14 de Romanos. Mesmo afirmando que é permitido comer de tudo, observa que, se, ao comer, você faz mal a seu irmão que pensa que é errado comer certas coisas, você está cometendo um erro. Veja bem: Você comete erro fazendo a coisa certa, porque faz mal para seu irmão. A verdade pode e deve andar de mãos dadas com o amor cristão. Isso é importante para a vida em comunidade e é importante para a amizade. Mesmo coisas duras podem ser ditas de um modo mais cuidadoso, para que sejam compreendidas ou, pelo menos, recebidas de uma forma mais tranquila. O amigo precisa reconhecer o cuidado que vem do outro e não ver nele alguém que o afronta. Amigos aprendem a cultivar isso com o tempo. E, vendo o outro cometer graves erros, mesmo pecados sérios, não o dão por perdido, mas oram por ele (1 Jo 5.6), porque querem o seu bem. O fato é que devemos agir assim com todos os que nos cercam, não só com amigos. Mas a amizade pode ser uma oportunidade especial para praticarmos esse jeito de agir e interagir.[1] Podemos, em nossas relações de amizade, exercitar o amor cristão, querendo sempre vivê-lo também nos demais relacionamentos e expressá-lo inclusive para com os desconhecidos. Estaremos dispostos a chorar com os que choram e a nos alegrarmos com os que se alegram (Rm 12.15), porque o amor cristão não evita o contato, não evita saber e se envolver, mas se dispõe a estar junto e a escutar. A pessoa amiga que exercita o amor cristão não é, então, aquela que se desvia de modo piedoso (“Ah, a vida tá difícil então. Mas vou orar por você. Fica com Deus.”) ou bohêmio (“Ah, esquece isso. Depois a gente sai para tomar umas.”). Ela fica junto e se dispõe a ser uma ajuda para o outro, pequena ou grande, conforme as possibilidades. E temos na Trindade o exemplo de amigo que se importa, atenta para o problema do outro e se envolve. Envolve-se ao ponto de o Filho ir à cruz para morrer pela humanidade. Não é sem razão que alguns escritores cristãos do primeiro século chamaram a Deus justamente de “amigo da humanidade”. [1] Leitores de Kierkegaard vão certamente pensar que minha proposta não faz sentido. De fato, a argumentação dele contra a amizade, enquanto um tipo de amor de predileção contrário ao amor do “deves amar ao próximo como a ti mesmo” é filosoficamente bem aprumada. Eu a admiro. Contudo, parece-me pastoralmente inviável. Discussões em particular serão bem-vindas.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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