Altered Carbon (NETFLIX): O problema da imortalidade e a (aparente) reversão do cristianismo5/21/2019 Altered Carbon: O problema da imortalidade e a (aparente) reversão do cristianismo
Cesar Motta Rios Aconteceu há algum tempo: A pergunta proposta era sobre o sentido da vida. Um amigo teólogo opina que a vida tem sentido somente por haver outra vida, ressurreição. Se tudo acabasse, não haveria sentido. Meu incômodo é imediato. Não me parece muito sensato haver sentido ou não haver sentido somente por uma diferença de duração. Procuro argumentar que a imortalidade não resolve todo o drama humano por si mesma. Olham com estranheza. Recorro ao conto El Inmortal de Jorge Luis Borges para ilustrar a questão. Agora, parece que posso recorrer a um produto cultural mais acessível. Não, não mais acessível. Só mais possivelmente acessado por grande parte da população usuária da Netflix. Na série, as pessoas levam um tipo de cartucho no pescoço. Se o corpo, que é chamado de “capa”, morre, basta inserir o cartucho em outro, que, para gente riquíssima, poderá ser um clone daquele mesmo que fora abatido. Assim, a vida dificilmente tem um fim definitivo. Aliás, tem se destruírem o cartucho. Aliás número dois, isso não para gente riquíssima, que tem o recurso do backup periódico em satélites. Se destroem o cartucho junto com a capa, recorrem ao backup mais recente. O máximo que acontece é perder um dia ou pouco mais de memória, considerando o momento do último backup. Sem revelar detalhes, considerando que alguém que leia pode ainda não ter assistido a série, observo algo curioso: há uma figura de liderança com perspectiva de ser salvadora da humanidade. Ela tem um grupo de seguidores, aos quais ensina com dedicação. Quando revela o modo pelo qual se daria a salvação, seus seguidores se espantam, em princípio. Sim, o método incluiria um sacrifício. Nada de sacrifício propiciatório. Não há propriamente divindades em Altered Carbon. Digo sacrifício no sentido de alguém que morre para que outros possam ter um mundo melhor. Há uma similaridade com a história de Cristo nesse ponto. Mas o tal mundo melhor não tem qualquer relação com uma vitória sobre a morte, mas, pelo contrário, é um mundo em que há uma vitória sobre a imortalidade. Aparentemente, trata-se de uma reversão da proposta do cristianismo. Minha leitura de Altered Carbon se aproximaria daquela que fiz de The Rain há uns meses. Mas, precisamos seguir mais um pouco para ver que não é exatamente assim. O mundo na série – que é mais de um só mundo, planeta – é hostil e até cruel para a maioria das pessoas, mesmo que consigam viver por séculos. Uns poucos, que têm recursos quase ilimitados (os mesmos que usam clones e fazem backups), conseguem se perpetuar no domínio e aumentar constantemente a exploração da grande maioria. O único limite que teriam naturalmente seria a própria morte. Agora, com a imortalidade tecnologicamente garantida, eles não enfrentam qualquer limite. E a maldade humana se torna, também, sem fim. (Nalgum momento, lembrei-me da positividade da morte como fim para o sofrimento em Sêneca, inclusive.) Há outros elementos interessantes relacionados com a religião na série, como a usurpação do lugar de divindade por parte dessa gente riquíssima, a perpetuação resistente de formas tradicionais de religiosidades, a concepção da dicotomia entre alma e corpo (completamente divergente da perspectiva bíblica, conforme, por exemplo, estudos recentes e não tão recentes sobre o sentido de nefesh no AT, mas, por outro lado, aparentemente compatível com algumas afirmações encontradas no NT). Mas meu ponto hoje é o da imortalidade, da vida sem um fim inexorável. Tanto quanto El Inmortal, Altered Carbon levanta a hipótese de que não ter fim não é suficiente para que seja bom, significativo. A não-morte pode ser pior que a morte. Parece-me que é algo assim que Lutero (no Comentário do Gênesis, lá pela página 245) vislumbrou quando explicou a interdição do acesso à árvore da vida por parte de Adão e Eva após a queda como um cuidado benéfico de Deus. O problema residiria no fato de que, vivendo para sempre naquela condição, o ser humano viveria para sempre susceptível a Satanás. Ainda mais intrigante é um texto muito mais antigo (século I d.C., provavelmente) conhecido como A vida de Adão e Eva (28.1-4), no qual Deus explica que não permite que o ser humano seja imortal naquela condição por causa da “guerra” que o inimigo colocara dentro dele. Essas conclusões exegéticas talvez não estejam tão claramente ancoradas no texto de Gênesis, quanto estão relacionadas com uma observação da realidade. [Trabalhei com esses textos num artigo que deve sair um dia.] O fato é que prolongar a realidade tal como a conhecemos não é nenhuma salvação. Bem dizia um amigo de Belo Horizonte (Thiago Bittencourt, seu nome): “Eu não tenho medo do fim do mundo. Tenho medo de que o mundo continue assim e sem fim.” Cristianismo não é sobre mais quantidade de tempo vida simplesmente, mas sobre a instauração de uma nova realidade, com uma qualidade de vida absolutamente diferente, na qual a infinitude é apenas uma das novidades presentes.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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