1º Domingo no Advento – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS AINDA FALAREMOS DE AMOR? Romanos 13.8-14, Isaías 2.1-5 Cesar Motta Rios Ao longo do século XX, o mundo testemunhou diversos episódios sangrentos na Irlanda por um conflito que era político e cultural, mas também religioso. Protestantes e Católicos estavam em lados opostos, e alguns não viam como algo completamente estranho usar armas ou bombas para impor sua visão. Muito sangue foi derramado pelas ruas de Dublin, no sul, e também na Irlanda do Norte. Famílias foram destroçadas. Em certo caso, pessoas foram a um mercado pensando que voltariam para casa com alimentos em suas sacolas, mas foram explodidas. Homens, mulheres e crianças perderam suas vidas. No começo dos anos 1980, a banda irlandesa U2 começa a se envolver com essa questão horrenda e vergonhosa. Em 1982, eles apresentam ao mundo a música Sunday Bloody Sunday. Como a Palavra de Deus estava em suas mentes pelo convívio que com ela tiveram ao longo dos anos, trazem para seus versos palavras emprestadas das Escrituras. Diante da consternação, repetem a pergunta do salmista inquieto: “Até quando?”. Adiante, lembram palavras do Apocalipse: “Eu vou enxugar suas lágrimas!”. A pergunta “até quando?” faz mais sentido quando nós cremos que há um “quando” a se esperar, um momento em que as lágrimas serão realmente enxugadas. Isso me lembra um primeiro aspecto do Advento, tempo litúrgico que vivemos agora. Nesses quatro finais de semana antes do Natal, nós não olhamos somente para a primeira vinda de Jesus na manjedoura, mas aguardamos também sua segunda vinda, que tudo resolve. E, se estamos impacientes diante das injustiças, podemos também perguntar: “Até quando?” E podemos clamar como os primeiros cristãos: “Maranata. Vem, Senhor Jesus!”. Mas há algo mais no Advento. Nós somos chamados a vigiar. É um tempo também de preparação. É tempo de lembrar que ainda há uma luta em andamento. Nessa mesma música do U2, escrita para lutar por paz, há dois versos muito oportunos nesse sentido: “A verdadeira batalha começou / Requerer a vitória que Jesus conquistou”. A verdadeira batalha, obviamente, não é a que vinham fazendo na Irlanda, não é aquela que a banda critica. Não é levantar armas contra os outros que pensam diferente. Não é vingança sobre vingança. É justamente o contrário. É uma batalha para ver feita a vontade de Deus. Como nas palavras de Isaías: ver espadas sendo usadas para arar a terra e lanças sendo adaptadas como foices, para o trabalho no campo. Instrumentos de morte passando a instrumentos para a produção de alimentos, para a manutenção da vida. Isso, Isaías diz que vai acontecer um dia. Mas não é a nossa realidade, de fato. Por outro lado, a partir do anúncio desse desfecho, o profeta convoca o seu povo no versículo seguinte: “Venham, ó casa de Jacó, e andemos na luz do Senhor.” A realidade perfeita não é para agora, mas ela nos leva a caminhar com essa nova referência e esse novo objetivo. “Andar na luz” - diz Isaías. Já Paulo, no texto que lemos, diz que devemos deixar as obras das trevas e nos revestir das armas da luz. A batalha começou, segundo o U2. Paulo concorda. (Aliás, é o U2 que concorda com Paulo, claro.) Conforme o versículo 11, devemos estar atentos a essa batalha justamente por causa da proximidade da nossa salvação. O Advento está realmente aí para nos lembrar disso. Então, não é mesmo só tempo de festejar? Não. Há uma guerra silenciosa pela prática do amor, pela vida, pela paz. E como se faz isso? O apóstolo havia mostrado isso nos versículos anteriores: o amor é o cumprimento da Lei. E essa é a vontade de Deus. Então, vivam com amor e pronto. Mas viver com amor não é olhar para o outro e ter coraçõezinhos flutuando. Isso é sentimentalismo. Viver com amor é um jeito de viver com ação (lembramos de João: não amemos de palavras!) em favor do próximo, de qualquer pessoa, toda e qualquer pessoa. O amor não pratica o mal contra ninguém. E isso é cumprir os mandamentos. Quem ama não agride o corpo ou a honra da outra pessoa. Quem ama não descumpre a sua promessa de fidelidade. Quem ama não usa outra pessoa como objeto a ser usado. Quem ama promove a vida e o bem-estar não só de sua casa, mas de todos que encontra pelo caminho. Tudo bem. É um discurso bonito isso. “Mas, ainda vamos mesmo falar de amor? Já falamos tanto.” Alguém que veio a muitos cultos pode pensar assim. Mas outra pessoa pode ser mais ácida em sua pergunta: “Ainda vamos mesmo falar de amor, mesmo vendo do que nós cristãos somos capazes? Mesmo com essas histórias de armas e bombas levantadas contra quem pensa diferente? Mesmo com nossas brigas e desentendimentos entre grupos cristãos, dentro de sínodos e comunidades? Podemos falar de amor?” Não só podemos. Precisamos. Não falar de amor para alertar os de fora: “Ei, vocês precisam amar!” Não. Mas para nós mesmos acordarmos de nosso sono, para nos lembrarmos dessa tarefa, dessa batalha em andamento, enquanto é tempo. Alguém mais entendido de teologia poderá dizer: “Mas Paulo, o apóstolo, sabe que nós não conseguimos amar os outros. Ele só escreveu isso para fazer a gente lembrar que é pecador e pedir perdão.” Aí eu preciso te contar que não, não é assim. A Carta aos Romanos tem uma organização muito interessante e clara. Na primeira parte, Paulo mostra que todos são pecadores. Não sobra um, seja judeu ou grego, para dizer que é totalmente correto. É nesse começo da carta que aparece o famoso versículo: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Na segunda parte da carta, Paulo mostra a boa notícia de que, mesmo sendo imperfeitos e pecadores, Deus nos acolhe e perdoa por causa do sacrifício de Jesus. É aqui, nessa segunda parte, que está a clara afirmação de que Cristo morreu para perdoar pecadores. A carta contava a seus leitores de Roma e conta a nós que somos perdoados pelo mérito de Cristo de todo pecado, por mais grave que pareça. Já na terceira parte, que é onde encontramos esse trecho sobre o amar o próximo como cumprimento da lei, o assunto é um terceiro passo: 1) Vocês são pecadores mesmo. 2) Vocês são perdoados mesmo. 3) Agora, perdoados e sem se preocuparem com merecimento próprio (porque já têm o merecimento de Cristo), vocês querem viver de acordo com a vontade desse que os salvou, não é? Sim. Então, aqui está uma instrução para fazer isso. E o cerne dessa instrução é simplesmente: Amem. E, se fizerem algo para alguém sem amor, cuidado. Não é por aí. Essa conversa parece coisa de pura utopia? Fica parecendo que não tem utilidade na prática? Pareceria ser assim sim, se a disposição de amar, o esforço para amar fosse válido só se fôssemos capazes de amar com perfeição e em todo tempo. Mas você percebe a inconsistência nessa ideia? Seria o mesmo que dizer que só posso fazer bolo em casa se for capaz de fazer um bolo perfeito como o de um confeiteiro profissional. Não é assim. Seria utopia também, se aquele que veio numa manjedoura e tanto nos amou nos tivesse deixado sozinhos até a sua segunda vinda. Mas, no Advento, queremos lembrar que aquele que veio e virá também vem. Ele vem a nós pela Palavra e pela Santa Ceia de modo especial; e, assim, ele nos fortalece, nos dá a vitória que conquistou, e nos ajuda a vivermos o nosso Batismo, “revestidos do Senhor Jesus Cristo”. Então, queremos e podemos dizer não aos atos terroristas por motivos políticos ou religiosos. Queremos e podemos dizer não ao pequeno terrorismo cotidiano das opressões psicológicas em nossos relacionamentos. Dizer não a toda forma de agressão. Queremos, enfim, dizer não a toda prática do mal, dizendo sim à radicalidade de amar o próximo como a si mesmo, por mais absurdo que isso pareça. Família de fé, há uma imensa felicidade para ser vivida por causa de Cristo no Advento. E há também algo a ser vivido com muita seriedade. Queremos estar preparados, como diz Jesus (Mt 24.44), sabendo que, agora, antes de sua volta, permanecem a fé, a esperança e o amor. Estes três. Porém, o maior deles é o amor (1 Co 13.13). Amém.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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