Terceiro Domingo de Páscoa – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A COMUNIDADE CRISTÃ E SUA ABERTURA PARA OS ESTRANHOS At 9.1-22; Ap 5.1-14 Cesar Motta Rios Ananias tem toda razão ao temer Saulo. No mínimo, nós também iríamos querer distância dele. E, se tivéssemos que conviver com ele, ficaríamos de olho aberto, vigiando, para ver se não daria sinais de infidelidade em algum momento. Ananias é do mesmo povo de Saulo. Ambos têm nomes comuns entre os judeus, inclusive por serem nomes tirados do Antigo Testamento. O nome Ananias é fácil encontrar em nossas traduções. É, por exemplo, nome daquele profeta enganoso, com quem Jeremias entra em conflito. Saulo pode ser mais difícil de encontrar por causa da mudança de sonoridade na passagem para o português. Mas é ninguém menos Saul, o primeiro rei de Israel, aquele que tenta matar Davi. Ananias e Saulo teriam tudo para se entenderem, a não ser pelo fato de que Ananias é Igreja, reconhece que Jesus de Nazaré é o Messias, enquanto Saulo entende que deve ir com todas as forças e todos os recursos contra a Igreja, para acabar com ela. Ananias tem mesmo razão ao temer Saulo, e ao querer distância dele. É do mesmo povo, por um lado. Mas é de outro povo, por outro lado. É um estranho. Mas o discípulo morador de Damasco escuta a voz de Deus, que anuncia ter outro plano em marcha. Então, lá vai Ananias andando pela cidade ao encontro do maldito Saul, não do antigo, que tentara matar Davi, mas desse novo, que queria matar o povo daquele que é a raiz de Davi. Ananias tinha suas ressalvas. Ele tinha suas opiniões. Mas, agora, tinha a Palavra de Deus, que se sobrepunha a tudo isso. O estranho precisa ser acolhido. Vai fazer parte. Vai ser um com os outros. E tem algo mais acontecendo. O estranho Saulo entra no plano de Deus de uma forma peculiar: Ele vai levar o nome de Jesus diante de outros povos, de reis e, também, dos filhos de Israel; diante de tudo que é gente. Eis um prenúncio: Vem mais gente estranha por aí. Se Saulo era estranho não por sua origem étnica ou sua formação cultural, mas por sua perseguição, esse plano de Deus traz à cena multidões de estranhos por falarem línguas diferentes, comerem comidas diferentes, terem costumes completamente diferentes e aparências também. É claro que essa abertura já estava iniciada desde a visita de Pedro ao centurião Cornélio, quando o Espírito Santo vem sobre uma porção de não-judeus. Mas Saulo, que chamaremos de Paulo, será fundamental para uma intensificação, para uma verdadeira radicalização dessa abertura. Um estranho (semelhante) chega e vai trazer muitos estranhos bem diferentes. Deus quer o estranho Paulo, e quer outros tantos estranhos. Isso, visto da terra, a partir dos acontecimentos narrados no livro de Atos, já é surpreendente. Mas fica mais impressionante quando isso é anunciado nos céus. João, no Apocalipse, nos ajuda. O Cordeiro que é digno de tomar o livro e abrir o selo é louvado como aquele que foi morto e que, com seu sangue, comprou para Deus gente que vem de toda tribo, língua, povo e nação, e fez com que essa gente toda fosse um reino e sacerdotes. O Cordeiro de Deus é louvado por fazer uma multidão de estranhos ser acolhida. E é aí que nós entramos. Aliás, é aí que estamos duplamente implicados, na verdade. Estamos implicados, porque, como comunidade do Cordeiro, como comunidade cristã, nós temos por vocação sermos abertos aos estranhos. Sim! É próprio da comunidade cristã a abertura para os de fora, o acolhimento sem obstáculos, o olhar de felicidade quando alguém que não é costumeiro se faz presente em nosso meio. Acolhimento verdadeiro, que é muito mais que mera tolerância. Não temos opção de sermos diferentes disso, a não ser que queiramos nos afastar do plano de Deus, do desejo do Cordeiro. A não ser que queiramos deixar de ser parte da grande comunidade cristã – também chamada “comunhão dos santos” - e formarmos um simples clube social. E isso não queremos. Então, nós pensamos sobre nós mesmos, sobre nossas ações e nossas atitudes não com vistas a nosso bem-estar simplesmente, não com vistas ao conforto dos de dentro simplesmente, mas com vistas ao acolhimento de todos os que se interessam em estar entre nós, em aprender conosco, em caminhar junto de nós. E, se em algum momento nos fechamos, se em algum momento fechamos as portas querendo uma paz ilusória, uma quietude que parece vir com a mesmice, com a ausência de novidades, de estranhos, nós seremos novamente incomodados, tirados de nosso comodismo e, se necessário, advertidos. Isso acontecerá, por causa de algo que comemoraremos logo no mês que vem: a abertura para os estranhos não se sustenta em Paulo. Ele foi instrumento de Deus em dado momento para que ela se intensificasse. Sim. Mas essa abertura para os estranhos começa mesmo e é sustentada como característica da Igreja por obra do Espírito Santo enviado naquele dia de Pentecostes após a assunção de Jesus. Ali se inaugura a dinâmica da Igreja. Ali o Caminho começa a caminhar. E não para mais, não se fecha ou se “mesmifica” indefinidamente, de tal forma que, se pensarmos bem, não poderíamos perguntar “Como é tal ou tal comunidade cristã?”. Não. Nós teríamos que perguntar: “Como está atualmente tal ou tal comunidade cristã?”, porque, enquanto naturalmente aberta, ela recebe novas pessoas, com novas peculiaridades, com novas características, e, então, como conjunto, ela está sempre se alterando, porque está sempre acolhendo. Agora, de propósito, deixei por último a constatação mais óbvia de todas: Não fosse esse o desejo de Deus, não fosse essa uma característica fundamental do plano do Cordeiro, nós não estaríamos aqui hoje, nem haveria este culto. É certo que não. Porque germânicos, italianos, povos ibéricos, africanos, nativos das Américas... Nenhum desses povos de nossos ancestrais faz parte da Igreja inicial. Todos eram completamente estranhos. E muitas pessoas desses povos se tornaram “de casa”, se tornaram família da fé, trazendo assim suas contribuições peculiares. E a história não para aí. Os que foram acolhidos pela abertura da Igreja não vão querer fechá-la. Por isso, podemos pensar sobre nós mesmos não como uma Comunidade para os da Comunidade, mas como uma Comunidade para São Leopoldo, com toda sua pluralidade e complexidade. E não fazemos isso como tarefa a ser suportada, mas como dádiva a ser vivida com gosto. Fomos comprados pelo sangue do Cordeiro. Não somos Igreja por mérito nosso, mas por graça, pelo sacrifício de Cristo na cruz. Isso é tão maravilhoso que nós vemos nos outros a real necessidade de saberem disso também, de estarem eles também inseridos, por mais estranhos e desconhecidos que sejam para nós. Nós, gente estranha feita família, amamos gente estranha e queremos que sejam também da nossa grande família de fé, por graça de Deus, por ação do Espírito Santo. Amém.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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