Os antigos olhavam para a comida e se lembravam da terra. É de onde ela vem. Pensar em uma vida fácil acabava sendo pensar em uma situação em que a terra desse comida sem relutância. Uma terra que manasse leite e mel seria bem desejável. Claro, a não ser que você tenha intolerância a lactose.
Mas, antes de irmos às referências bíblicas, é bom considerar que não é só o povo hebreu que falava de terra dando comida. No poema hesiódico Os Trabalhos e os Dias encontramos cinco “raças” ou “eras” de seres humanos que se sucederam em contínua decadência nos primórdios. A primeira, a de ouro (χρύσεον γένος), tinha o privilégio de ter disponível um campo (ἄρουρα) doador da vida que lhe trazia espontaneamente fruto abundante (versos 117-118). Não muito diferente era a situação de Adão e Eva, que viviam em um pomar plantado por Deus. Jardim não é termo adequado, porque é lugar de flor, em que o que interessa é mais a estética. Pomar é que dá sustância e vida boa, o que não exclui também a beleza, é claro. [Sobre essa tradução de גַּן por “pomar” no relato do Gênesis, cf. VAZ, Armindo dos Santos. A visão das origens em Gênesis 2,4b-‐‑3,24: Coerência temática e unidade literária. Lisboa: Edições Carmelo / Edições Didaskalia, 1996. p. 137-184.] Fora desse tempo de vida ideal, a comida vem da terra com mais ou menos trabalho. Mas, mesmo conseguido com esforço, o alimento é, em última instância, resultado da bondade de Deus. Afinal, a comida vem da terra. E a terra, como criação de Deus, depende ainda dele para sustentar seus ciclos. É fácil lembrar: Jesus ensina a pedir pelo pão da próxima refeição na prece mais famosa de todas. O pão em questão é alimento produzido artesanalmente. Há um processo humano envolvido. Não é o trigo que se mastiga. Mas esse processo ainda não oculta o elo entre a terra e aquilo que se come. Inclusive, deve-se lembrar que a farinha não era, em princípio, tão refinada como a nossa. Esse elo claramente perceptível entre o pão e a plantação transparece em outras preces que nos chegaram da Antiguidade. Na Didakhé, a oração da Eucaristia inclui um pedido de que, como o trigo estava disperso pelos campos e foi ajuntado para se fazer esse pão, também aconteça com os fiéis (Didakhé 9.1-5). Mais clara ainda é a bênção do pão que se perpetuou no Judaísmo: “Bendito és tu SENHOR, nosso D-us, Rei do Universo, que tira o pão da terra”. Obviamente, Deus tira o pão da terra fazendo crescer o trigo! Em nosso tempo, em grandes centros urbanos, olhamos para boa parte do alimento que consumimos e nos lembramos não da terra, mas do supermercado ou de dinheiro. Comemos o que nós mesmos tiramos do plástico, e não aquilo que o Criador tira da terra. Problema com isso? Bom seria poder dizer que não há nenhum, que é só uma questão de contexto, mas nossos corpos carregam outra mensagem. Adoecemos e perdemos qualidade de vida por nos afastarmos da terra, donde viemos e para onde haveremos de tornar. O alimento processado sucessivas vezes oculta seu vínculo com a natureza, oculta também o nosso vínculo com a natureza e o fato de que nossa alimentação depende de Deus, e não somente de nós mesmos. Há uma perda de significado, além de uma perda de saúde. Rendemo-nos às grandes corporações, que decidem (e decidem mal, para nós) o tipo de adoçante que devemos ingerir, a quantidade e o tipo de gordura, o tanto de sódio etc. Quando muito, olhamos para uma gigantesca lista de ingredientes e uma tabelinha nutricional, nas quais devemos confiar. Muitas vezes, na verdade, precisamos crer mesmo sem entender. Donde é que vem o tal xarope de glucose que inunda nossas sobremesas industrializadas? Enfim, quer comais quer bebais, [...] fazei tudo para a glória de Deus. O ponto mais importante é esse somente. O objetivo desta reflexão não é sugerir uma radical mudança em sua alimentação. A ideia é simplesmente convidar a uma reconsideração. Pessoalmente, gosto da ideia de uma alimentação que não se submeta aos ditames dos grandes grupos empresariais. Nem sempre é possível, mas aprecio essa atitude subversiva que é preparar o próprio alimento e entender o que se come.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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