#2: Não fuja, despreze ou oculte o que não é de seu agrado (Santa Ceia/Eucaristia e Sacrifício)8/2/2017 Da série Como não ler os Pais da Igreja!
#2: Não fuja, despreze ou oculte o que não é de seu agrado. Na última postagem desta série, adiantei que haveria de comentar sobre outro erro comum entre leitores dos Pais da Igreja: ignorar os dados que desagradam. Trabalharei a partir de um exemplo específico e, a meu ver, significativo. Robert Rosin, professor de História da Igreja no Concordia Seminary (Saint Louis), certamente já leu muito mais que eu dos Pais da Igreja. Contudo, em um texto intitulado “Lutero, a Santa Ceia e Roma”, parece-me que ele deixa de mencionar dados importantes para a exposição que desenvolve. É possível que o faça por esquecimento (do que desagrada) ou para evitar incômodo em seus leitores (por causa do que desagrada). Seja qual for o caso, não se trata de atitude produtiva e academicamente adequada. Para começar, uma citação longa (tome fôlego!): “Ao mesmo tempo, sementes de outros problemas germinaram e cresceram. Uma foi a questão da Ceia ser um sacrifício. O Papa Gregório o Grande (590-604 d.C.) colocou o fundamento quando disse que embora Cristo tenha ressuscitado de modo que a morte não tenha poder sobre ele, Cristo ainda assim era trazido a nós ‘por meio do mistério do santo sacrifício’. Podemos compreender como o ‘sacrifício’ poderia ganhar impulso. Afinal, os sacerdotes ofereciam sacrifícios no Antigo Testamento. E Cristo é mostrado no Novo Testamento como o grande Sumo Sacerdote que sacrificou a si mesmo. Claro, não se fala no Novo Testamento de outros sacerdotes que sacrificam, mas argumentando que a Igreja é fundamentada em Pedro, a rocha, como vigário – ou substituto (como na expiação vicária) – então Pedro deveria fazer o que Cristo fez. E aos apóstolos também foi dada a incumbência de continuar a fazer o que Cristo fez, a saber, sacrificar. Eu não concordo com esta lógica. Dar os elementos com promessas de salvação não equivale automaticamente a sacrificar. Mas podemos compreender como o argumento é feito. Além disso, lembre-se do contexto. Enquanto um império caía aos pedaços, a Igreja foi incumbida de levantar um sinal de força, esperança e estabilidade. A própria Igreja e o clero como um símbolo de poder visível (por causa dos sacramentos visíveis) poderiam servir muito bem.” (ROSIN, 2009, p. 15) Perceba que a apresentação do entendimento da Eucaristia/Ceia como sacrifício faz o leitor considerar que o responsável foi o Papa Gregório o Grande. É ele que coloca o “fundamento”. O trecho que Rosin cita do referido Papa (‘por meio do mistério do sacrifício’) é tomado da obra História da Teologia de Hägglund. Esse acesso indireto é outro problema sobre o qual haveremos de conversar. Agora, o que me interessa é observar que, para ser honesto e preciso, não se pode sugerir que somente no século VI d.C. tenha ganhado força a ideia da Ceia como sacrifício. É certo que a palavra de um Papa é importante para fortalecer um entendimento. Deveria, sim, ser mencionada. Mas precisa ficar claro que não foi ele que inventou a ideia do sacrifício eucarístico ou garimpou uma ideia existente, mas rara. Pelikan, um leitor atentíssimo dos escritores antigos, observa: “Como a referência de Irineu à Eucaristia como ‘não pão comum’ indica, contudo, essa doutrina da presença real crida pela igreja e afirmada por sua liturgia estava estreitamente vinculada à ideia da Eucaristia como sacrifício. Muitas das passagens que já citamos a respeito da recordação e a presença real falavam também do sacrifício, como quando, em várias passagens ambíguas, Justino contrastava o sacrifício do judaísmo com o sacrifício oferecido em ‘rememoração efetuado pelo alimento sólido e líquido’ da Eucaristia Cristã.” (PELIKAN, 1975, p. 168) A bem da verdade, o termo “altar” associado à Eucaristia/Santa Ceia já é suficiente para se sugerir alguma relação da refeição ritual com algum tipo de ato sacrificial. Entendo que o termo em português já é suficiente para isso, mas, se é preciso fortalecer o argumento, veja como isso acontece em grego no início do século II d.C.: Σπουδάσατε οὖν μιᾷ εὐχαριστίᾳ χρῆσθαι μία γὰρ σὰρξ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ καὶ ἓν ποτήριον εἰς ἕνωσιν τοῦ αἵματος αὐτοῦ ἓν θυσιαστήριον ὡς εἷς ἐπίσκοπος ἅμα τῷ πρεσβυτερίῳ καὶ διακόνοις τοῖς συνδούλοις μου ἵνα ὃ ἐὰν πράσσητε κατὰ θεὸν πράσσητε "Esforçai-vos diligentemente por fazerem uso de uma só eucaristia, pois uma é a carne do nosso Senhor Jesus Cristo; um é o cálice para a unidade do sangue dele; um é o altar, como um é o bispo, junto com o presbitério e os diáconos, meus conservos,para que aquilo que vierdes a fazer, o façais conforme Deus." (Carta de Inácio de Antioquia aos Filadélfios 4:1 - Minha tradução) Agora, considere o termo grego para altar: θυσιαστήριον é formado a partir do termo θυσία, que significa justamente “sacrifício”, juntamente com o sufixo -τήριον, que expressa a ideia de lugar (em que acontece tal ou tal coisa). Trata-se do lugar do sacrifício. No fim das contas, um altar é justamente isso! Como poderiam os primeiros cristãos manterem longe a ideia de sacrifício? Não usando esse termo, mas mantendo a Santa Ceia como algo que acontece à mesa simplesmente. E veja que o problema é tratado sem a devida atenção, de tal modo que, eventualmente, acontece de alguém que nega qualquer ideia sacrificial da Ceia recorrer a Hebreus 13.10 para falar exatamente da Ceia. Ora, se Hebreus 13.10 é para ser lido literalmente como se referindo à Santa Ceia (exemplificando a exclusão de alguém dela), temos que admitir que, dentro do próprio cânone, temos uma Ceia que acontece em um lugar de sacrifício. Pois diz: ἔχομεν θυσιαστήριον ἐξ οὗ φαγεῖν οὐκ ἔχουσιν ἐξουσίαν οἱ τῇ σκηνῇ λατρεύοντες. Temos um altar/lugar de sacrifício do qual não podem comer os que servem ao tabernáculo. (Hb 13.10 - Minha tradução) Discutir isso detidamente exigiria outra série de postagens. Alguém poderá tentar vincular esse lugar de sacrifício com o sacrifício de louvor, o que não resolveria tudo, é claro. Mas, enfim, meu propóstio é bem humilde. Só quero deixar claro que colocar o entendimento de uma relação estreita entre Ceia e sacrifício na conta de Gregório o Grande não tem cabimento. Quem já está satisfeito com o exemplo (ou com raiva demais) pode parar de ler por aqui. O texto já está bem grande. Mas acrescento o outro exemplo planejado, com mais uma citação de Rosin: “Em seu livro “Acerca do corpo e sangue do Senhor” (De corpore et sanguine Domini) do século IX, Pascásio Radberto (c. 790-860) argumentou que, depois de ditas as palavras da consagração, não haveria mais nada além de corpo e sangue – não mais pão e vinho, apenas a forma ou aparência externa. Em outras palavras, o que estava lá talvez tenha aspect, tato, olfato e sabor de pão e vinho, mas era de fato e na realidade a mesma carne e sangue que nasceram da virgem Maria. Para Radberto isto seria um reforço para Agostinho: estes elementos eram não apenas um sinal vazio; de fato eram mais do que aquilo que pareciam ser; eram realmente corpo e sangue exatamente lá e em nenhum outro lugar. Note: Radberto praticmanete ensinou a essência da transubstanciação, porém sem usar o termo.” (ROSIN, 2009, p. 16-17) Radberto é muito famoso (e frequentemente apresentado de modo emblemático em comparação com Berengário e Ratramno), mas, de alguém que se dedica à História da Igreja, espera-se o cuidado de reconhecer a maior antiguidade dessa proposta, ou de algo bem aproximado. Os seguintes trechos de Cirilo de Jerusalém nos servem bem aqui: “Não te aproximes, pois, do pão e do vinho como se meros elementos vazios. Pois acontece de serem corpo e sangue de Cristo, segundo a sentença do Senhor. Com efeito, mesmo que a percepção sensorial te sugira isso [que são simples elementos vazios], a fé te mantenha firme e certo! Não julgues a coisa a partir do paladar, mas, a partir da fé, sem hesitação, fica plenamente seguro, tendo sido considerado digno do corpo e do sangue do Senhor.” “Tendo aprendido essas coisas, e tendo ficado plenamente seguro de que o que aparece como pão não é pão, mesmo que seja assim sensível ao paladar, mas corpo de Cristo; e que o que aparece como vinho não é vinho, mesmo que o paladar isso queira, mas sangue de Cristo...” (Aulas Catequéticas XXII 6 e 9) Ora, no século IV, havia um Pai da Igreja ensinando que os que parecia pão já não era pão etc. Pode desagradar a um luterano ou a seu público que essas ideias circulassem com mais frequência e por mais tempo. Mas os fatos estão aí para serem descobertos e discutidos. Quem não quer enfrentá-los quando não parecem convenientes deve procurar outra área de interesse. Portanto, ao ler os Pais, não fuja dos dados que não te agradam, nem os esconda! Na próxima semana, apresentarei um texto mais ameno. Um amigo me sugeriu uma postagem mais instrutiva, com sugestões para quem ainda não tem o hábito de desbravar a patrística por conta própria. Espero, em meio aos meus próprios devaneios, ser capaz de apresentar caminhos a outrem. Aproveito para comentar que não estou deixando ou pretendendo deixar de ser luterano. Como disse a um amigo por estes dias, o que pode produzir alguma estranheza é o fato de que, quando leio, não leio como luterano ou como não-católico romano, não-pentecostal, não-reformado ou não-qualquer coisa. Leio como um leitor que pretende ser atento, perspicaz e honesto com os textos. Só isso. ------------ PELIKAN, Jaroslav. The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine. Volume 1: The Emergence of the Catholic Tradition (100-600). Chicago: The University of Chicago Press, 1975. ROSIN, Robert. Lutero, a Santa Ceia e Roma. In: BUSS, Paulo (Org.) Comunhão e Separação no Altar do Senhor: Textos do 2º Simpósio Internacional de Lutero. Porto Alegre: Concórdia, 2009.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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