Eu sei que a maioria das pessoas tem uma resposta única e convicta para a pergunta. Tomé tocou mesmo nas mãos e no lado de Jesus? Sim - diz a maioria. Não - Diz um ou outro. Eu dou as duas respostas a seguir, com uma mínima justificativa para cada. Sim, Tomé tocou nas feridas de Jesus! Argumento: Em João 20.25, Tomé diz claramente que só iria crer se visse as marcas dos cravos nas mãos de Jesus, e (importante!) se não colocasse o dedo nas feridas dos cravos e a mão no lado de Jesus. Ἐὰν μὴ ἴδω ἐν ταῖς χερσὶν αὐτοῦ τὸν τύπον τῶν ἥλων καὶ βάλω τὸν δάκτυλόν μου εἰς τὸν τύπον τῶν ἥλων καὶ βάλω μου τὴν χεῖρα εἰς τὴν πλευρὰν αὐτοῦ, οὐ μὴ πιστεύσω. O quadro de Caravaggio, que ilustra a postagem, parece confundir as ações no detalhe. O dedo se destaca no toque do lado. Bom, mas o importante é que, depois, Jesus aparece e coordena as ações: Leva o dedo aqui e vê minhas mãos. Leva tua mão e coloca-a no meu lado. Φέρε τὸν δάκτυλόν σου ὧδε καὶ ἴδε τὰς χεῖράς μου, καὶ φέρε τὴν χεῖρά σου καὶ βάλε εἰς τὴν πλευράν μου Interessante como Jesus respeita o detalhe proposto por Tomé: Dedo para as feridas das mãos e mão para o lado. Mas, mais importante para o argumento, é que a fala de Jesus já serve como narrativa da ação. É como se o leitor visse o que está acontecendo enquanto Jesus o diz. Há toda uma força visual na construção. Seria redundante se o evangelista resolvesse, depois de uma ordem tão descritiva, dizer: "Então, Tomé colocou o dedo...". Na verdade, seria até enfadonho. O leitor já leu Tomé dizer que pretende fazer tal e tal coisa. Jesus vem e diz para Tomé fazer tal e tal coisa. Se o texto repete a ação pela terceira vez, agora, na voz do narrador, seria exagerado. Não, Tomé não tocou nas feridas de Jesus! Argumento: Até aqui, ficou claro que o texto em si não diz que Tomé realizou a ação que ele diz pretender realizar. É compreensível que a ordem detalhada de Jesus possa ser interpretada por alguém como suficiente para se pensar que a ação ocorreu enquanto ele falava. Contudo, isso é uma interpretação bastante hipotética. Dito mesmo não está! Além do mais, convém ler o que segue do texto. A fala de Jesus não termina com as instruções de movimentos. Ele termina com uma frase importantíssima: "Não seja incrédulo, mas crente!" E o texto diz que Tomé respondeu dizendo: "Senhor meu e Deus meu!" O texto não diz: "Tomé fez como Jesus dissera e respondeu...". Seria uma forma estilisticamente adequada de se deixar claro que a ação foi realizada (Cf. Mateus 1.24). Mais importante ainda é a fala final de Jesus no episódio: "Porque me viste, creste! Benditos os que, não vendo, creem!" Ora, ele creu por ter visto Jesus, não por tê-lo tocado! Se a ação que estigmatiza Tomé tivesse sido realizada por ele, era de se esperar que o texto mostrasse Jesus dizendo: "Porque me viste e me tocaste, creste!" A ação de tocar saiu de cena! Por quê? Pode muito bem que o que se está narrando é o seguinte: Tomé queria ver e tocar Jesus. Jesus apareceu e lhe mandou fazer aquilo. Mas o reconhecimento era tão inevitável, e a situação tão maravilhosa, que Tomé ficou só ali embasbacado escutando Jesus dizer aquelas palavras. Então, em vez de agir conforme seu plano pueril, ele simplesmente se desfaz de todas as suas pretensões e confessa a fé. Então, por fim, Jesus, reconhecendo que o ver foi suficiente sem o tocar, mostra que muitos viriam a crer sem tocar e sem ver tampouco! No fim das contas, se Tomé foi considerado por muitos como alguém de pequena fé por depender do tato, talvez isso seja um erro. Depender do tato pode ter sido experiência de outros (Posso me lembrar de 1 João 1.1?), e não de Tomé. Ele, pelo contrário, desiste de sua epistemologia capenga diante da revelação. Apega-se a esta, e confessa de modo mais claro que todos os outros a divindade de Cristo. ------------------- Escolha sua resposta. Confesso que ainda não escolhi a minha.
4 Comments
HORST SIEGFRIED MUSSKOPF
4/23/2017 01:15:15 pm
Muito interessante a dúvida, se Tomé tocou de fato ou "embasbacado escutando Jesus dizer aquelas palavras" simplesmente desfaz as suas pretensões. Tem lógica a argumentação dessa dúvida. Mas seria mais interessante, penso, descobrir nesse evangelho, o de João, por uma questão de estilo literário e ouvinte alvo, a força do argumento da ação não consumada. De certa forma ancorar a dúvida no que se deduz da lógica de Mateus 1.24, que é outro evangelho com estilo e ouvinte alvo diferente, me parece enfraquecer um pouco o argumento, embora não o anule. Me parece que a argumentação inicial está bem alinhada. Mas a duvida fica no ar, sim, claro, a dúvida. A dúvida muitas vezes mostra o quão pueris somos. Também não me decidi... Nem sei se vou!
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Cesar Rios
4/23/2017 02:34:07 pm
Cesar M. Rios Ótimo! Faz a gente dar uns passos a mais! Se pensarmos no contexto de surgimento do Evangelho de João, e pudermos atrelá-lo ao do contexto da Primeira Carta de João, teríamos algo favorável ao SIM. O ato de tocar o corpo de Cristo é importante contra os docetas. Mas o Evangelho não enfatiza tanto quanto a carta a "corporeidade física" de Jesus. Há quem diga que, enquanto a carta se preocupa com a demonstração da humanidade de Cristo, o Evangelho cuida mais da demonstração de sua divindade (apesar de João 1.14). Seriam momentos distintos. Ainda assim, não seria pouco interessante pensar que o autor reforça a encarnação mais para o final do texto. Bom, mas, voltando ao que já foi dito, acho que a dúvida (ou a resposta NÃO) precisa estar ancorada mais no silêncio ou falta de explicitação que em uma dedução a partir de Mt 1.24. O versículo de Mateus só serve como forma de mostrar que seria possível narrar explicitamente a ação sem ser repetitivo, sem ter que recontar usando as mesmas palavras mais uma vez. O fato de ser Mateus é interessante só por um motivo: é um texto quase contemporâneo. Em princípio, eu citaria qualquer texto de qualquer época. Mas um texto contemporâneo não mostra somente que o recurso narrativo existe, mas também que estava disponível naquela época. Contudo, quero dar um passo mais importante e mostrar que esse recurso estava exemplificado não só em um texto contemporâneo, mas também em um texto mais antigo importantíssimo para o autor do quarto Evangelho (haja vista a forma como ele começa seu relato): o Gênesis! Em Gn 7.5, há algo bem semelhante ao que se vê em Mt 1.24. Isso prova que João tinha um repertório disponível para narrar o fato sem ser repetitivo. Só prova isso. Não prova que ele teria que fazer assim. Mas o ponto é importante para o argumento, uma vez que alguém poderia perguntar: "Bom, Cesar, o argumento da resposta NÃO diz que João não deixou de dizer explicitamente tudo simplesmente para não ser repetitivo (como os da resposta SIM alegam), mas que ele não o disse explicitamente por não o querer dizer mesmo. Mas o argumento do evitar repetitividade é bom! Ora, como ele diria tudo aquilo sem ser repetitivo? Teria como." A resposta é: "Teria como sim." Ou seja, essa reflexão toda com Mt 1.24 não pode mesmo servir de fundamento para o NÃO. Ela só serve para responder a essa possível pergunta. Ela só serve para dizer que era possível ser explícito de forma agradável.
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Eládio Pereira
1/11/2021 04:44:03 am
Tomé não poderia tocar, pois Jesus estava em espírito e não em corpo físico. Inri Cristo confirma esta verdade.
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Renan Soares
11/28/2021 02:32:34 pm
A paz de Cristo irmãos.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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