O episódio em que Jesus vai ao Tanque de Betesda e, ali, cura um paralítico nos reserva algumas questões interessantes. A primeira diz respeito a um problema na transmissão manuscrita do texto. Em alguns manuscritos, há um anjo que desce dos céus de vez em quando e agita as águas do tanque. Na minha infância, eu ficava encucado com a cena. Por que Deus faria aquilo? Parecia uma brincadeira de mau gosto. Pois então, Nestle-Aland entende que se trata de um acréscimo, que tentaria explicar o agitar da água no tanque. Mas, se não havia anjo, havia mesmo agitação da água? Sim. Pesquisas arqueológicas demonstraram muito bem que o Tanque de Betesda tinha uma estrutura bem comum em tanques judaicos, sendo, na verdade, duplo. Havia um tanque superior e um inferior. O inferior era destinado aos banhos. O superior funcionava como reservatório. De tempos em tempos, abriam-se comportas e água caía do superior para o inferior. Obviamente, agitava-se a água! É possível que copistas não habituados a esse tipo de estrutura tenham estranhado a agitação da água e deduzido que haveria de ser algo miraculoso.
Pois bem, mas o assunto desta postagem deveria ser outro. O caso é que há quem afirme que o tal Tanque de Betesda teria sido, naquele tempo, não uma piscina judaica, mas uma espécie de santuário do deus Esculápio, associado a curas milagrosas. Esculápio é o nome romano. O nome grego do moço é Asclépio. Escolha o que preferir. (E, sim, o símbolo atual usado para a Medicina vem dele mesmo!) Em todo caso, a cena teria um ingrediente a mais. Por que Jesus teria ido até lá e curado somente um homem? Porque seria um judeu procurando cura no deus errado. Jesus, então, teria entrado naquele ambiente cheio de não-judeus, encontrado o judeu desgarrado, e resolvido o problema, para que ele saísse de lá. De onde tiraram isso? A interpretação parece ter surgido pela descoberta de estatuetas e oferendas relacionadas com o deus greco-romano bem na área do Tanque. Ora, Jerusalém estava sob domínio romano. Era uma cidade absorvida pela cultura romana e helenística como qualquer outra, dizem. Ótimo! Mas... Desde quando tive conhecimento dessa interpretação pela primeira vez, em 2014, achei que havia algo mal explicado. Contrariando amigos e alunos (Curso de Estudos Judaicos do eteacherbiblical.com. Naquele tempo, eu tinha internet decente para aulas online.) que curtiam a ideia, eu argumentava com dois recursos: 1) Fontes textuais: Flávio Josefo e Fílon de Alexandria narram fatos que nos fazem entender que a relação dos judeus com Jerusalém era diferente. Nem tudo que era tolerado em outras cidades na Judeia e Galileia seria aceito na cidade do Templo [Referi-me brevemente a isso em um artigo publicado no ano passado sobre Cesareia Marítima. Querendo, procure AQUI], muito menos bem ali ao lado, como o Tanque de Betesda. Se seria tranquilo um "santuário" dedicado a Esculápio em qualquer cidade romana das redondezas, o mesmo não se pode dizer sobre Jerusalém. Seria um ensejo para revoltas vigorosas! 2) Interpretação de dados arqueológicos: Em 2014, não tive acesso a dados completamente claros sobre as escavações do Tanque de Betesda, mas sugeria que seria plausível que as tais estatuetas e peças votivas encontradas ali datassem do século II d.C.. Seriam oriundas do período em que os judeus haviam sido expulsos da cidade, que deixou de se chamar Jerusalém, para receber o nome de Aelia Capitolina. Nesse tempo, sim, Jerusalém (que nem era Jerusalém) foi uma cidade romana como outra qualquer. Faria muito mais sentido. Seria muito mais coerente com o que revelam as fontes textuais. Convenci alguns. Outros tinham gostado tanto do drama judeu-gentílico da cena, que não arredaram pé. Outros, ainda, ficaram com pena de abandonar a interpretação: "Ah, mas é uma possibilidade, não é?" Enfim, lembrei desse assunto hoje por ter encontrado o artigo excelente de um especialista que confirma minha leitura: GIBSON, S. The Excavations at the Bethesda Pool in Jerusalem: Preliminary Report on a Project of Stratigraphic and Structural Analysis. In: F. Bouwen (ed.) Sainte-Anne de Jérusalem. La Piscine Probatiquen de Jésus à Saladin. Jerusalem: Saint Anne, 2011. p. 17-44. Se você procurar bem, vai descobrir que o texto está disponível de graça no Academia.edu.
3 Comments
Jamesson xavier de Souza
2/26/2020 07:05:41 pm
Gostei do estudo e por isso m proponho a receber artigos e matérias do vosso conteúdo
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Angela Maringoli
8/20/2022 12:49:38 pm
gostei da sua explicação. prefiro crer como vc. Viu o video do Rodrigo Silva? Ele pensa diferente https://www.youtube.com/watch?v=ee0952atEQw
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Arthur bolsi
1/21/2022 10:12:20 am
Afinal as piscinas eram um templo romano dedicado ao Deus Asclépio ??
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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