Cesar M. Rios
Foi-me solicitado considerar o que certos livros sobre História da Igreja muito comuns em seminários e faculdades brasileiros dizem a respeito da prática do batismo de infantes na Igreja Antiga. Pois bem, os autores simplesmente não desenvolvem o tema. Apenas o mencionam de passagem. Observe: > “O batismo infantil, que Tertuliano criticava e Cipriano apoiava, e o batismo clínico, de doentes, surgiram nesse período”. (CAIRNS, 2008, p. 102) > “Quanto a se a igreja primitiva batizava crianças ou não, os acadêmicos não conseguiram chegar a um acordo. No século III, há indícios claros de que os filhos de pais cristãos eram batizados desde a meninice, mas todos os documentos anteriores deixam-nos em dúvidas”. (GONZÁLEZ, 2011, p. 98) > Walker menciona trecho de Tradição Apostólica de Hipólito, que deixa evidente a prática de batismo infantil a princípios do século III d.C., mas, ao mencionar a resistência de Tertuliano ao batismo infantil, afirma: “O próprio Tertuliano – mesmo diante da prática, já bem estabelecida nessa época, de batizar infantes e crianças – achava prudente que as pessoas postergassem o batismo...”. (WALKER, 2015, p. 130) > Martin Dreher, tratando sobre o período do cristianismo imperial (sob Teodósio), afirma: “Somente adultos eram batizados; crianças eram batizadas em caso de doença”. (DREHER, 2013, p. 82) Cairns, Walker e Dreher parecem posicionar-se junto aos estudiosos que negam a prática contínua do batismo infantil desde o período apostólico até o século III. González não se posiciona, mas ressalta a existência de dúvidas. A conclusão a que chego é a seguinte: Não há como opinar a partir dessas obras somente. É preciso entender melhor as hipóteses levantadas, e verificar minimamente o que temos nas fontes primárias. Pois bem, há três possibilidades iniciais: 1) o batismo infantil nunca deixou de ser praticado; 2) o batismo infantil era praticado no tempo dos apóstolos, passou por período de (quase) inexistência e voltou à tona no final do século II; 3) o batismo infantil só começou a ser praticado no final do século II. Quanto ao período neotestamentário, há indícios, mas não referências claras ao batismo infantil sendo efetivamente praticado. Textos que falam de batismo de uma coletividade (por exemplo, a casa do carcereiro) podem servir a quem quer entender que havia batismo infantil. Textos como Atos 8.12, por outro lado, podem servir a quem quer entender que não se praticava o batismo de crianças, uma vez que, após a pregação de Filipe, são batizados “tanto homens quanto mulheres” (ἐβαπτίζοντο ἄνδρες τε καὶ γυναῖκες), termos que, em princípio, indicam pessoas adultas dos dois gêneros, sem que se acrescente referência a crianças. O fato é que esses trechos permitem inferências em ambos os sentidos, mas não oferecem dado seguro e suficientemente detalhado para afirmações definitivas. Já a suspeita de que no período anterior ao final do século II não se praticava o batismo infantil se dá pelo silêncio dos escritos imediatamente após o período apostólico a esse respeito. A Didakhé descreve o batismo dos catecúmenos de forma que o torna praticamente impossível para infantes. Além disso, não menciona um procedimento específico para as crianças. Isso acontece em outros escritos de forma semelhante. Ou seja, não só há silêncio sobre o batismo infantil. Paralelo a esse silêncio, há explicações minimamente detalhadas sobre o batismo não-infantil. Isso faz parecer que o batismo de crianças surge como novidade tardiamente. Contudo, se, por um lado, a Primeira Apologia de Justino (100 a 165 d.C.), 61, faz parecer que o batismo não é próprio da infância, pois requer escolha e conhecimento, por outro lado, lemos Irineu de Lyon (130 a 202 d.C.) referir-se a bebês e crianças nascidos de novo em Contra Heresias II:22:4 (o termo “batismo” não aparece, mas o novo nascimento em Irineu é certamente vinculado ao batismo, como vemos em Contra Heresias III 17 1 – Para perceber isso, contei com ajuda de um historiador do final do século XIX: SHELDON, 1985, p. 289). Poucas décadas mais tarde, encontraremos, por exemplo, Tertuliano (160 a 220 d.C.), Hipólito (170 a 236 d.C.) e Cipriano (? a 258 d.C.) se referindo ao batismo infantil como algo de conhecimento de seus leitores. O primeiro, como visto em Walker, se opõe à prática. Há quem diga que se opõe ao batismo de infantes filhos de não-cristãos, mas isso não está claro no texto. Parece uma interdição mais geral. Inclusive, ele responde ao argumento de divergentes que remeteriam ao “deixai vir a mim as criancinhas”: ait quidem dominos, Nolite illos prohibere ad me venire: veniant ergo, dum adolescunt, dum discunt, dum quo veniant docentur: fiant Christiani cum Christum nosse potuerint. Realmente, o Senhor afirma: ‘Não os proibais de virem a mim’. Que venham, então, enquanto crescem, enquanto aprendem, enquanto são ensinados a quem estão vindo: Tornem-se cristãos quando puderem conhecer Cristo. Ou seja, no princípio do século III, sabemos com certeza que a prática é comum, mas não unânime ou uniforme. Enquanto Tertuliano a desaconselha, Cipriano não discute se crianças devem ser batizadas, mas combate os que afirmam que elas só podem ser batizadas no oitavo dia após o nascimento (em uma conexão rigorosa com o rito da circuncisão). Também na primeira metade do século III, Orígenes (185 a 253 d.C.) defendia a prática do batismo infantil com base no pecado herdado dos pais, e afirmava que a prática não era invenção, mas tradição que vinha desde os apóstolos (Coment. Epist. Romanos 5 9 11). Ora, por mais que Orígenes não diga necessariamente algo correto do ponto de vista histórico, não é de se esperar que tivesse a coragem de atribuir aos apóstolos uma prática que fosse percebida por seus leitores como novidade. Ou seja, sua afirmação indica, no mínimo, que em seu tempo e espaço, o batismo de infantes era entendido como algo praticado desde gerações anteriores. (Infelizmente, embora Orígenes também enfatize vigorosamente a necessidade de arrependimento e fé por parte do candidato ao batismo, chegando a afirmar que ser batizado sem verdadeiro arrependimento produz condenação, ele não nos legou qualquer explicação que demonstre a forma como concilia essa perspectiva com sua perspectiva sobre o batismo infantil. Isso faz com que alguns percebam a inserção do batismo infantil na prática e no pensamento da Igreja Antiga como uma anomalia, cf. FERGUSON, 2006, p. 134). Diante desse cenário fornecido pelas fontes, alguns historiadores afirmam que havia batismo infantil em todo o período, apesar de umas poucas comunidades resistentes. Alguns cogitam que a ideia de que o batismo lavava somente os pecados já cometidos teria feito com que as pessoas postergassem o batismo para idade mais avançada, no mínimo, para depois da juventude, o que teria desestimulado o batismo de infantes. Esse seria o fenômeno responsável por fazer parecer que não se batizavam as crianças. Contudo, trata-se, ao que parece, de fenômeno do século IV (HERTLING, 1986, p. 58), enquanto nossas dúvidas são oriundas de silêncios do século I e II. Outros estudiosos, como visto, entendem que, ao contrário, a prática não existia, sendo introduzida paulatinamente a partir de meados do século II. Em conclusão, do ponto de vista acadêmico, reconheço que pairam dúvidas sobre a prática do batismo infantil, no mínimo, entre fins do século I e fins do século II d.C.. Ao menos, é possível suspeitar que a prática não foi unânime entre as diferentes comunidades ao longo dos primeiros séculos. Acrescento uma nota pessoal: Parece-me que alguns pesquisadores tendem a interpretar as fontes e suas lacunas conforme a prática de suas instituições eclesiásticas. De minha parte, entendo que a prática da igreja antiga não é normativa para a Igreja de todos os tempos. Além disso, entendo que o fundamento para o batismo infantil é e deve ser mais teológico e exegético que histórico. Referências: CAIRNS, E. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 2008. DREHER, Martin. História do Povo de Jesus: Uma leitura latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2013. FERGUSON, E. Baptism according to Origen. In: Evangelical Quarterly, v. 78, p. 117-135, 2006. GONZÁLEZ, J. História Ilustrada do Cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 2011. HERTLING, L. Historia de la Iglesia. Barcelona: Editorial Herder, 1986. SHELDON, H. C. History of the Christian Church. Volume 1: The Early Church. Peabody: Hendrickson, 1985. WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2015.
8 Comments
Rodrigo Erstling
9/9/2016 05:57:03 pm
Texto muito bem elaborado e fundamentado com pesquisa aprofundada. Parabéns! Obrigado pelos esclarecimentos.
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Cesar Rios
9/10/2016 03:25:18 am
Obrigado pela gentileza do retorno, Rodrigo.
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João Bosco
3/6/2017 04:15:59 pm
Parabéns pelas palavras, sobretudo pelo entendimento pessoal a respeito do assunto .
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3/6/2017 04:49:41 pm
Muito obrigado, João Bosco. Seja sempre bem-vindo por aqui.
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Angelo
11/28/2021 10:05:55 am
Parabéns!
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Isaías
4/7/2022 05:56:33 pm
Como fica a passagem do eunuco e Felipe? A pergunta foi o que me impede de ser batizado? A resposta foi é licito se creres!
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Reginaldo Lins
6/15/2022 08:26:11 am
Caríssimo irmão Isaías! Quando os comentaristas acima se.referem ao sentido teológico e exegético, leia-se "teologia do pacto". Algo da revelação progressiva que muitos conhecem, mas poucos entendem.
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Eliezer
7/23/2022 12:51:18 pm
Se um ministro pela fé em Deus, batiza uma criança, o faz na lembrança de que Deus batizou a todos, adultos e crianças, no mar vermelho segundo a hermenêutica paulina. 1ª Coríntios 10:1-4.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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