[Aviso: Este texto deve contrariar muitos sermões que você escutou ou pregou. Não se assuste. Isso é normal.]
Ao lermos Mateus 5.20, nosso primeiro impulso é identificar a pregação da justificação por graça mediante a fé. A justiça que excede à dos escribas e fariseus seria a mesma que excede toda possível justiça humana: a justiça de Cristo, que seria dos leitores (ὑμῶν) por ação graciosa de Deus. Se isso foi o que Jesus pretendeu dizer, é certo que não foi compreendido pelos ouvintes, sejamos sinceros. Não digo que esse sentido não estivesse pretendido para o futuro, mas, certamente, ele sabia que outro sentido estaria óbvio e seria apreendido por todos que o escutassem. E, aqui, há certa dificuldade: só conseguimos ver os fariseus como insistentes praticantes da Lei, como rigorosíssimos legalistas. Embora Josefo, que fora fariseu por muitos anos, afirme que eles eram tidos como os que com maior diligência explicavam as coisas relativas à lei (οἱ μετὰ ἀκριβείας δοκοῦντες ἐξηγεῖσθαι τὰ νόμιμα – B.J. 2.162), não podemos afirmar que fossem vistos como exímios praticantes da Lei por todos. É certo que tinham uma preocupação considerável com questões relativas à pureza ritual, por exemplo. Mas alguém podia se lembrar de algo muito dito na Antiguidade, e que aparece também no Novo Testamento (cf. 1 Jo 3.18): é preciso haver coerência entre o que se diz e o que se vive. Além disso, pelos discursos de Jesus, percebemos que a conduta dos fariseus era criticável em muitos sentidos. E isso não passaria despercebido por judeus mais rigorosos, como os responsáveis por alguns textos encontrados entre os MMM, como o Documento de Damasco e as Regras da Comunidade. Por exemplo, em Mt 12.9-14, fica claro que Jesus entende que os fariseus veriam como normal um homem manter a vida de um animal que caísse em um buraco no sábado. Mas o Documento de Damasco (XIII 22-23) afirma claramente que isso não deve ser feito: “Nenhum homem deve ajudar um animal em seu resgate no dia de Sábado. E se esse animal cair em um buraco ou canal d’água, ele não deve erguê-lo de (ou ‘preservar sua vida’) lá no Sábado”. No trecho, Jesus não confirma nossa ideia de fariseus rigorosíssimos. Pelo contrário, lança mão do fato de que os fariseus não são os rigorosos do contexto. É como se dissesse: “Ei, vocês fariseus nem são como aqueles outros. Vocês até permitem que se cuide de uma ovelha no sábado. E, mesmo assim, vão implicar com a cura de um ser humano?” Por isso, ter uma justiça que exceda à dos fariseus (e escribas) podia ser entendido como algo ainda experimentável no plano humano. Na verdade, a fala de Jesus em Mt 5.20 não seria tanto um alerta de impossibilidade, mas sim um alerta sobre a frouxidão com que certo grupo estava se relacionando com a Torah. Esse modo de tratar a Torah não devia ser seguido pelos que ouviam Jesus. Veja que esse é o assunto! A Torah deveria permanecer íntegra (Mt 5.18). E, no trecho seguinte (Mt 5.21), vem o discurso com a estrutura “foi dito... eu digo”. Se parecer necessário ainda, confira-se Marcos 7.10-13/Mateus 15.3-6. Um dos problemas dos fariseus é justamente não serem fieis observantes da Torah! Claro, a partir de nossa perspectiva, é possível dar um passo além e sugerir que, naquele momento, o propósito final já era manter a leitura rigorosa da Torah, para esclarecer nossa incapacidade de cumpri-la. Ou seja, é preciso encarar a coisa tal qual ela é, e não fingir que é mais amena, para que reconheçamos nossa condição diante dela e de Deus. A partir disso, sim, haverá relevância para a Graça. Cesar M. Rios
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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