#1: Não considere que leu (os Pais da Igreja) sem ter lido - A veneração de Maria antes do século IV7/27/2017 Da série Como não ler os Pais da Igreja!
#1: Não considere que leu (os Pais da Igreja) sem ter lido (A veneração de Maria). Começo esta série de postagens com uma explicação sobre meu propósito. Não se trata de uma série de postagens de conteúdo estritamente acadêmico, mas de reflexões pessoais que venho realizando enquanto me dedico academicamente ao estudo de certos Pais da Igreja (Inácio de Antioquia e Clemente de Alexandria em especial). Minha perspectiva, minha plataforma de observação está vinculada à minha formação protestante e atual vínculo com uma instituição protestante. E há nisso alguma dificuldade, pois é justamente na forma costumeira de muitos protestantes lerem (ou não lerem) os Pais da Igreja que encontro problemas graves. Nesta série de postagens, então, pretendo refletir livremente a respeito de como protestantes não deveriam ler e recorrer à patrística. Para iniciar de uma maneira leve, conto um caso que me faz lembrar dos anos de 1980 e 1990. Na minha infância, minha família me formava como um batista típico daqueles tempos. Nosso diálogo ecumênico com os parentes católico-romanos era bem limitado. Restringia-se, a bem da verdade, a acusações superficiais e a gracejos sem a mínima graça. Entre as acusações que se escutavam naquele contexto, estava aquela que atribuía a Constantino a inserção da devoção a Maria no cristianismo. O Imperador pagão teria fomentado um sincretismo que favorecia a utilização de Maria em substituição às figuras femininas do panteão greco-romano. Essa era uma forma de ler os Pais da Igreja! Era a nossa forma: simplesmente, não ler, mas falar da história como se os tivéssemos lido. Afinal, por vezes, agimos como se houvesse verdades tão fundamentais e necessárias em nossos embates inter-religiosos que nem julgamos necessário verificar nas fontes disponíveis sua realidade. Mas os textos estão aí para serem lidos. Deparei-me, então, com uma interpretação alegórica interessantíssima de Clemente para a figura de Maria. Veja só: “Que maravilha mística! Um é o pai do Universo. Um, também, é o Lógos do universo. O Espírito Santo é um e o mesmo em todo lugar. E uma é a única virgem que vem a ser mãe! Eu gosto de chamá-la ‘Igreja’. Essa mãe, estando sozinha, não tinha leite. Porque, sozinha, não havia se tornado mulher. Mas é ao mesmo tempo mãe e virgem. Pura (ἀκήρατος) como uma virgem e afetuosa (ἀγαπητικὴ) como uma mãe! E, chamando para junto de si os seus pequeninos, nutre-os com um santo leite, o lógos infantil.” (Pedagogo I, 6 – Minha tradução) É certo que, ao alegorizar, a figura histórica de Maria parece sair do foco. Não haveria veneração direta à pessoa de Maria. Não obstante, ela recebe um destaque considerável. Além disso, as afirmações do teólogo podem logo ensejar uma leitura que conecte a figura histórica, Maria, e seu sentido alegórico, Igreja, de modo íntimo e profundo. De modo semelhante, o casamento é exaltado por meio da analogia entre matrimônio e a relação entre Cristo e a Igreja em Efésios 5, mesmo que o autor deixe claro que, ao dizer “Grande é este mistério” (τὸ μυστήριον τοῦτο μέγα ἐστίν – Ef 5.32), refere-se não ao casamento, mas ao outro lado da analogia. Não vem ao caso, mas é interessantíssimo como a imagem construída por Clemente é teologicamente rica. A Igreja, enquanto ajuntamento de gente simplesmente, não tem nutrição espiritual a oferecer, assim como uma virgem. Mas, paradoxalmente, mesmo sendo ajuntamento de gente simplesmente, quando nela se faz presente a Palavra, como aconteceu com a virgem, há leite, isto é, há alimento espiritual. A Igreja não tem nutrição a oferecer por causa da erudição de seus membros, mas por causa da presença da Palavra! Voltemos! Outro caso notável é o de Irineu de Lyon, que, em Contra Heresias (Livro III, Cap. 22), trabalha de modo curioso a partir do paralelo já desenvolvido por Paulo entre Adão e Cristo, como novo Adão, trazendo Maria em correlação com Eva. Eva, por sua desobediência, trouxera perdição para toda a raça humana. Maria, por sua obediência, tornou-se causa de salvação para toda a humanidade. Pois bem, é verdade que, em outros Pais da Igreja dos primeiros dois séculos, como Inácio de Antioquia, Maria aparece como personagem histórico importante, mas somente para mostrar a realidade da encarnação (em carne e osso!) de Jesus do que para qualquer outra coisa (cf. Aos Tralianos 9.1). Mas casos como o de Clemente e de Irineu mostram que, pelo menos, nas construções retóricas e exegéticas, havia uma preparação considerável para que Maria recebesse destaque vultuoso na devoção do povo cristão. Imaginar que, antes de Constantino, todo mundo via Maria como, em geral, os evangélicos brasileiros a veem é fruto de descuido. Confuso? Pode ser. Mas é melhor reconhecer que há certa confusão no volumoso arquivo de textos dos escritores cristãos antigos que simplesmente fingir que se sabe o que há neles sem tê-los de fato lido. Na próxima semana, pretendo pensar sobre outra postura problemática. Quero tratar brevemente sobre a questão da Eucaristia/Santa Ceia, e mostrar como até um teólogo competente pode não lidar com os Pais da Igreja de modo correto, porque uma forma de não se ler bem os Pais da Igreja é desconsiderar dados que não nos agradam. Colegas luteranos que me perdoem, mas o tal teólogo que servirá de exemplo é de nosso arraial. Abraço fraterno!
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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